sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Uma aventura encantada

Parte IV (Final)

A nave-tuba mergulhou nas profundezas do universo. Passaram por muitas estrelas de tamanho e brilho variados; por nebulosas brilhantes e constelações imensas. Assim conheceram a espada de Órion, o olho vermelho do Touro, a Cabeça de Cavalo, as patas do Caranguejo... Saíram da Via–Láctea, atravessaram galáxias inteiras... Aquilo não tinha fim.
Então, chegaram ao vazio...
– Estamos no fim do universo, se é que o universo tem um fim! – disse Ariel. – Percebem o vazio de coisas? O Buraco Negro, invisível, encontra–se próximo, aspirando, sorvendo tudo!
Pura verdade. Os instrumentos da nave-tuba indicavam a existência de uma força de poder infinito, absorvendo, tragando tudo para si, inclusive a nave onde se encontravam os amiguinhos.
– Segurem–se – gritou Ariel estonteado pela turbulência – Estamos sendo sugados pelo Buraco Negro. Segurem-se!
Era uma ordem impossível de ser cumprida. A Nave-Tuba, colhida por um redemoinho, rodopiou feito um pião, num turbilhão imenso, submergindo profundamente naquilo do qual nada pode sair, nem mesmo a luz: o Buraco Negro.


***

Então tudo se quietou.
Do lado de fora da nave, os heróis avistaram uma paisagem tenebrosa. Rochas nuas e negras, expelindo línguas de fogo, pareciam os únicos habitantes daquele deserto medonho...
– Aqui é o Inferno! – ganiu Ludi.
– A moradia do Calibã – gemeu Ariel. – Estamos perdidos e completamente abandonados. Jamais conseguiremos sair deste lugar maligno.
– Um momento, amiguinhos! – disse Puck, que não perdia o bom humor por nada. – Estou me lembrando das palavras do meu Mestre: a Música, sim, foi o que ele disse, a Música percorre um caminho misterioso e mágico... Agora posso compreender... Percebem? A Música é o sopro de coisa muito maior e mais poderosa que qualquer força existente... Estou dizendo que a Música nasceu do sopro do próprio Criador Supremo. Ah! Temos que encontrar a nossa Fada. Ela poderá nos tirar deste abismo. E sei como encontrá-la!...Vamos, Ludi. Sopre o meu bocal, crie um acorde maravilhoso, ele nos guiará até a Fada-Mãe.
Assim foi feito: o acorde, mavioso, brotou do flautim, ganhou os ares e, flutuando suavemente, seguiu caminho, acompanhado de perto pela nave. Passaram por paragens tenebrosas. As rochas negras tornavam-se mais imponentes e havia no chão, a cada passo, fendas abismais, de onde saíam labaredas ameaçadoras. Neste instante, um rugido pavoroso rasgou os ares e os amiguinhos, assustados, puderam avistar aquilo: ele, em carne, osso e pura maldade: Calibã.
O monstro medonho, com fuças de um enorme felino, apenas um olho coruscante no meio da testa, pêlos eriçados e disformes, garras imensas e presas descomunais, guardava a entrada de uma caverna escura.
– Um gato, eu sabia que seria algum tipo de gato – sussurrou Ariel, trêmulo. – Estamos perdidos, jamais passaremos por ele.
Ludi também sentiu medo. No entanto, seu instinto de cão, parecia se fortalecer a cada instante. Cães não nascem para temer gatos, nem mesmo aqueles que deixaram de ser gatos e se transformaram em monstros com um olho só. Era isto que se passava na cabecinha de Ludi, que, sem mais delongas partiu para o ataque contra Calibã, latindo com todas as suas forças. Ao notar a presença do cachorrinho, o Gênio do Mal rugiu uma espécie de miado, fazendo com que o seu hálito pestilento doessem as narinas de Ludi. O cachorrinho não se intimidou. Gato é gato, e cachorro é cachorro! Assim pensou. E atacou. Parecia mesmo feroz.
A luta foi encarniçada. Ludi avançava e recuava, incansável, pulando e latindo sem parar. Calibã, rugindo, desferia patadas violentas, das quais o cachorrinho, aos saltos incríveis, se esquivava como que por milagre.
– Ele descobriu o gênio que tinha dentro de si, o Gênio da Coragem! Eu não havia dito que ele tinha também um gênio? – exclamou Ariel.
– Ah, o Bem, por ser Bem, precisa ter mais coragem que o Mal, que é covarde. Mas Ludi é pequenino demais e poderá ser morto – disse Puck.. – A não ser que possamos fazer alguma coisa... Do-ré-mi! Tive uma idéia! Aposto que o ponto fraco do monstro é aquele olho vermelho, não estou certo? Pois vou entrar nesta briga, ah, se vou!
Neste momento, Calibã levava a melhor. Uma patada certeira atingiu Ludi, lançando-o longe. Bateu numa rocha, quase desmaiando. Uma garra de Calibã havia riscado fundo o pêlo de seu peito, produzindo um corte. O sangue brotou, manchando de vermelho a pelagem branca em torno da ferida. Puck aproximou–se do amigo.
– Ei, cãozinho valente, você está bem?
– Um pouco tonto... Esse é o gato mais bravo que já enfrentei – disse Ludi, falando uma mentirinha, porque, na verdade, nunca tinha enfrentado gato algum em toda sua vida. (E sequer, admita-se em segredo, tinha raiva de gatos).
– Escute, Ludi! Tive uma idéia. – disse Puck, apressado, pois Calibã avançava, pretendendo terminar o serviço que havia começado. – Temos que acertar o olho do bicho, é a nossa única chance...
– E como faremos isto? – gemeu Ludi – Ora, Puck, agora não é hora para brincadeiras! Não vê que estou sangrando?
Calibã se aproximava, disposto a desferir o golpe fatal. O olho vermelho coruscava e a bocarra medonha arreganhava dentes que pareciam de aço...
– Coloque-me em sua boca, Ludi. Mire o olho da fera e sopre com toda a força que tiver. Depressa, o bicho está bem perto!
Ludi colocou o flautim na boca. A fera avançava, o olho faiscando, a bocarra rosnando ódio e mau cheiro, a pata erguida, as garras esticadas para o golpe final.
– Agora – disse Puck.– Mire no olho...Sopre!
O acorde, agudíssimo, saiu pontudo e veloz com uma flecha, cravando-se bem no centro do olho vermelho de Calibã. O gatão urrou de dor e de desespero. Tentou, com as patas dianteiras, tirar o dardo que lhe cegava o olho. Em vão. Enfurecido, começou a dar patadas a esmo, caminhando de maneira trôpega e desnorteada. Sua cegueira, dor e ódio não o deixaram ver uma das muitas fendas que rasgava o chão, um buraco de profundeza abismal, de onde saíam terríveis labaredas. Pois Calibã caiu ali dentro, numa queda vertiginosa – e bem funda a se julgar pelo longo e cada vez mais distante miado que se pode ouvir...

***


Os amigos pararam na entrada da caverna escura. Estavam todos muito emocionados. Estaria a Fada-Música aprisionada lá dentro? O coraçãozinho de Ludi martelava dentro do peito, do qual escorria um filete de sangue. Entraram, cuidadosamente, a nave-tuba iluminando o caminho. Foi quando a avistaram...
Ela estava ali, sentada numa cadeira de pedra, com as pernas e os braços agrilhoados por correntes pesadas. Ludi se espantou. Uma indescritível emoção encheu–lhe os olhos de lágrimas... Tratava-se de uma menininha. De uma linda menininha que parecia dormir. Estaria morta?
Ariel voou, desnorteado, sem saber o que fazer. Puck, porém, sempre buliçoso, parecia eufórico.
– É a primeira vez que eu a vejo. Oh, Ludi, como ela é bonita! Venha aqui, amiguinho. Quero que você me sopre, com a maior ternura possível... Vamos, meu querido amigo, sopre-me.
Ludi obedeceu, soprando, delicadamente, o flautim. Os acordes alçaram o ar, bailando em direção à Fada. Então aconteceu aquilo: como que encantados, as notas harmônicas, como pequenas faíscas luminosas, envolveram a menina, ondeando sua cabeleira, rodeando o seu corpo, brincando e dançando como fios ondulantes de luz e de cor. Os grilhões, um a um, romperam-se. A menina, tornada um ser luminoso, despertou. Imediatamente, sons de extrema beleza inundaram o ambiente. Ludi jamais tinha ouvido ou sentido música de tamanha doçura e beleza. Ah, o mestre Oberon tinha razão: a música não atinge apenas os ouvidos, mas o próprio espírito dos seres vivos. E a Música, mágica, crescia, erguia-se de sua prisão. Seu dedinho, carinhoso, tocou a estrela branca na testa de Ludi (que imediatamente iluminou-se), e, em seguida, sobre a ferida no peito, que, no mesmo instante, parou de sangrar e de doer... Depois, afagou a cabecinha de Ariel, deixando que o passarinho lhe beijasse o rosto. Sorriu ao pegar Puck em suas mãos, levando–o aos lábios, fazendo com que o flautim tocasse a música mais bela que já se possa ter escutado. E, tocando, pôs-se a dançar, a dançar, envolta por notas e acordes brilhantes, criando um turbilhão de sons e de luz, de uma beleza estonteante, envolvendo a tudo e a todos, transportando-os por um caminho maravilhoso... A cabecinha de Ludi rodopiava, perdia-se, embriagada, no meio de tanta beleza e prazer...
Rodopiava, rodopiava, rodopiava...



Epílogo


Ludi abriu um olho, depois o outro. Um primeiro raio do Sol da manhã aquecia-lhe o focinho, sempre tão frio e úmido. Despertou. Encontrava–se em seu quarto. Em sua caminha redonda.
Então havia sonhado? Ariel, Puck, Oberon, a Fada-Música... Tudo não havia passado de um sonho maluco e maravilhoso? Olhou em direção à gaiola, lá estava o azulão, ciscando o alpiste.
Sem cantar.
“Ariel”! – quis falar Ludi, mas a única coisa que conseguiu foi emitir um latido esganiçado.
Então tudo não passara de um sonho! Que pena, havia sido tão bonito, tão real! Que pena! Sentiu-se desconsolado.
Neste momento, sentiu uma leve dor, bem no meio do peito. Abaixou a cabeça, e, espantado, viu a cicatriz da ferida provocada na luta contra Calibã e curada pela Fada-Música.
Então, tudo fora real!
Ludi voltou o seu olhar rapidamente para a gaiola. O azulão, cabeça entre os ferros, observava-o, mudo.
Ludi sabia o que tinha de ser feito: foi até a gaiola, ergueu a portinhola, libertando o passarinho.
O azulão ganhou os ares do quarto, num vôo curto e belo. Em seguida, aproximou-se de Ludi, deu-lhe uma bicadinha no focinho, como um beijo, e voou até o parapeito da janela. Voltou-se então para o cachorrinho, esticou o gogó e soltou o mais lindo trinado de toda a sua vida, a mesma música tocada pela Fada-Música no flautim, após ter sido libertada.
Assim feito, voou para o céu azul e ensolarado da manhã que nascia deixando para Ludi – que tinha os olhos embaçados de lágrimas – a delicada música suspensa no ar.


FIM

Uma aventura encantada

Parte III


A nave–tuba, com espantosa velocidade, chegou à Lua quase num piscar de olhos.
– Segundo crê o nosso Mestre – disse Puck, lendo a partitura dada por Oberon – é bastante provável que a primeira nota esteja enterrada no único satélite da Terra, a Lua. Vejam sua superfície.
A superfície iluminada da Lua exibia milhares de crateras.
– São vulcões extintos? – perguntou Ludi.
– Não, não – respondeu Ariel. – Estas crateras resultam do impacto de meteoritos que se chocaram com a Lua. No entanto, não creio que o Gênio do Mal tenha escondido qualquer coisa neste lado iluminado. Calibã prefere a escuridão. Devemos dirigir nossa busca à face oculta da Lua.
A nave–tuba deu a volta, entrando no hemisfério invisível do satélite. Pousaram. Ludi, focinho no chão, começou sua tarefa de farejar...
– Está por aqui. Posso senti-la... A nota dó foi enterrada nesta imediação, snif, snif... – farejava Ludi, como um perdigueiro caçador. – Está aqui, encontrei!
Suas patas dianteiras começaram a cavar, a cavar, abrindo mais uma craterazinha na Lua. O que ele havia dito antes, sobre gostar de cavar buracos, era a mais pura verdade.
– Achei! – disse, retirando do buraco, com a boca, a nota , coberta de poeira lunar. – Está viva! Venha Puck, guarde-a dentro de você. Ei, o que é isso? Cuidado, amiguinhos, fujam, fujam!
Neste instante, uma chuva de meteoritos, uma espécie de granizo cósmico, começou a cair. A nave-tuba, num deslocamento veloz, recolheu, de imediato, os seus tripulantes, um instante antes que o bombardeio de pedras os atingisse.
– Ufa! – exclamou Puck, dentro da segurança da nave, que deixava a Lua. – Esta foi por pouco! Escapamos de boa.
– No entanto, amiguinhos, tenho uma péssima informação para todos nós. – disse Ariel, muito sério. – Aquela chuva de meteoritos não aconteceu por acaso. Tenho a certeza de que Calibã já conhece a nossa missão e nos vigia. Doravante, todo o cuidado será pouco.
Logo chegaram ao primeiro planeta do sistema solar, Mercúrio, ali pertinho do Sol. Notaram que a superfície do planeta era bem parecida com a da Lua, mas com muitas crateras irradiando riscos brilhantes. Ali, Ludi não farejou a presença de nenhuma nota musical.
Vênus, o próximo planeta, surgiu envolto em nuvens brancas. Os amigos se espantaram ao descobrir que o planeta tem o seu movimento de rotação contrário ao da Terra. Ademais, a única coisa que Ludi farejou, quando se aproximavam, foi um cheiro muito ruim de ácido sulfúrico... Calibã, com certeza, havia envenenado a atmosfera do planeta com o intuito de matar os heróis, que deram meia–volta, saindo bem depressa dali.
Passaram novamente pela Terra, o planeta azul, nosso lar, e seguiram em direção a Marte, o planeta vermelho – cor esta devida à sua atmosfera rosada. E foi dentro da cratera de um gigantesco vulcão que Ludi farejou e desenterrou a nota , colocada imediatamente dentro do brincalhão Puck, este, a cada instante, mais feliz. Tiveram de escapar rapidamente de Marte, pois os dois satélites do planeta vermelho, Fobos e Deimos, guerreiros beligerantes, a mando de Calibã, tentaram alcançá–los para destruí–los.
Em seguida, a nave-tuba atravessou, cuidadosamente, um mar de asteróides, chegando a Júpiter, o planeta coberto por faixas de nuvens coloridas. E foi no interior da grande nuvem de fósforo vermelho que Ludi descobriu a nota mi, imediatamente guardada dentro do flautim.
Prosseguiram. Saturno, o mais belo dos planetas, impressionou os amiguinhos, com a visão magnífica de seus anéis. E, seguindo as instruções contidas na partitura de Oberon, Ludi acabou por descobrir a nota enterrada em Titã, um dos dez satélites de Saturno.
A nota sol foi descoberta em Urano, o planeta esverdeado, e a nota em Tritão, uma lua de Netuno. Não foi nada fácil. Calibã tentou eliminar os heróis, com as mais terríveis e traiçoeiras armadilhas: erupções vulcânicas, gases venenosos, avalanches e assim por diante. Não conseguiu, porém, atingir o seu maléfico objetivo, graças à esperteza e inteligência dos amigos...
Assim, seguindo passo a passo as informações da partitura do Mestre Oberon, os pequenos valentes foram encontrar a última nota, o meigo si, congelado na superfície do distante Plutão. O Sol, visto de onde se encontravam, parecia apenas uma estrela maior. Pronto, agora o time estava completo dentro de Puck, que não cabia em si de tamanha felicidade.
Ariel riscou, na superfície do gelo, cinco linhas horizontais, desenhando, do lado esquerdo, uma clave de sol.
– Pronto, agora é com vocês – disse para Puck e Ludi.
O flautim aproximou seu bocal prateado do focinho de Ludi.
– Vamos, amiguinho, sopre–me agora suavemente. Mas bem depressa, que está muito frio, neste planeta.
Ludi soprou com cuidado e carinho.
O acorde, formado pelas notas musicais, bailou suave na atmosfera, pousando sobre as linhas desenhadas por Ariel. E, num encantamento, puderam ler a chave do enigma:

“De dentro do qual nada pode sair, nem mesmo luz."


***
– Nada pode sair? – latiu Ludi.
– Nem mesmo luz? – gemeu Puck.
Ariel conhecia prisões.
– O Buraco Negro! A Música foi aprisionada no Buraco Negro! – exclamou Ariel. – A mais segura gaiola do universo. A própria moradia de Calibã! Eis o enigma revelado!
– Buraco Negro?! – espantou–se Ludi. O que vem a ser isso?
Ariel respirou fundo.
– Um aspirador, Ludi. Não um aspirador de pó comum, desses que os humanos usam na faxina de suas casas. Porque além de ser invisível, o Buraco Negro, com sua força de gravidade imensurável, é um aspirador de universos. Voltemos para a nave-tuba. Já conhecemos o nosso destino.

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Uma aventura encantada

Parte II

A porta da frente da loja de instrumentos musicais estava bem trancada, foi inútil o esforço que Ludi realizou com suas patinhas dianteiras na tentativa de abri-la. Como tomado por um pressentimento, o cachorrinho, num impulso, correu para a lateral do prédio. Acertou. Havia ali uma pequena janela de vidro, quase rente ao chão que, não resistindo à força de suas patas, deixou–se abrir. Os amiguinhos, cautelosos, penetraram no recinto. Estava escuro lá dentro. Ariel, com o bico, ligou o comutador, acendendo a luz. O que viram? Achava–se ali desdobrado, além do piano, tudo quanto canta e ressoa, zune, estronda, sussurra, matraqueia e ruge. De um lado, os instrumentos de corda: graciosos violinos de verniz marrom com seus arcos delgados, a violeta, o violoncelo canoro, a viola de gambá, a viola d'amore, o gigantesco contrabaixo, a harpa... Acolá, os instrumentos de sopro: a flauta travessa, o fagote, com sua boquilha curva e suas chaves e alavancas brilhantes, o pastoril oboé, o corne-inglês, a pesada tuba, o garboso trompete... Do outro lado os instrumentos de percussão: os timbales, o bombo, a pandeireta...
Ludi e Ariel contemplavam, assim, uma grande e silenciosa orquestra. O passarinho, resoluto, dirigiu-se aos instrumentos, indagando:
– Quem, dentre vocês, me chamou, hem? Quem foi que, um pouco mais cedo, me lançou aquela piscadela luminosa? Vamos, coragem! Estamos aqui para ajudar. Tenho certeza de que ninguém deste mundo sabe e sente mais pelo desaparecimento da Música, do que vocês, não é verdade? Afinal, não posso, agora, imaginar alguma utilidade para os instrumentos musicais...
Enquanto Ariel falava, Ludi, amistoso, erguia as patinhas dianteiras, abanando o cotozinho marrom de pontinha branca.
Houve resposta.
Um lampejo iluminou um canto do salão. Ariel voou rápido até o local, descobrindo: fora o bico de prata do flautim que havia refulgido a luz.
– Quem é você? – perguntou–lhe Ariel.
– Meu nome é Puck – respondeu o flautim, cuja voz, muito aguda, fez Ludi ganir. Os ouvidos de um cachorro são hiper sensíveis aos agudos.
– Puck?
– Sim. E já vou avisando: sou um gênio buliçoso e brincalhão. Espero que vocês não me queiram mal.
– Nós não lhe queremos mal, Puck. Mas será que daria para você falar de modo um pouco menos agudo? – pediu Ludi, esfregando as patas nas orelhas.
– Oh! Perdoe–me, tenho uma sonoridade brilhante, minha altura de som fica situada uma oitava mais aguda que a da flauta e dizem os maestros que é a única a conseguir dançar no encantamento do fogo... Não entendo bem o que isso quer dizer, mas acho bem simpático. E vocês? O que pensam disso? – indagou Puck, soltando uma risadinha.
– Ora – exclamou Ariel –Verdadeiramente temos aqui um gênio buliçoso e brincalhão...
– Meus ouvidos que o digam – queixou-se Ludi – Mas vou me acostumar, assim espero...
– No entanto, Puck – disse Ariel – não viemos aqui para brincar. A Música foi raptada, o mundo corre perigo. Presumimos, meu amiguinho Ludi e eu, que aqui encontraríamos alguma pista...
***

– E acertaram em cheio! Bem-vindos à minha orquestra!
– Quem falou? – perguntou Ariel.
– Quem disse isso? – reforçou Ludi.
– Ora, não fiquem preocupados – disse Puck. – Não conhecem o gênio da criação? O piano? Foi ele – Oberon – que me pediu para atraí-los até aqui. Ele quer conversar com vocês.
Dirigiram-se até o piano. O grandioso instrumento então disse:
– Meu nome é Oberon, sou o gênio da criação. Vejo que já sabem do terrível crime cometido. A nossa Fada-Música foi raptada pelo terrível Calibã e assim, o mundo corre grande perigo. Somente vocês poderão libertá-la...
– O senhor, Mestre, saberia onde ela – a Música – se encontra prisioneira? – perguntou Ariel, respeitosamente.
– Infelizmente, não! – respondeu Oberon, com voz grave. – No entanto, tenho uma pista, que vocês deverão seguir. Escutem, amigos. Conheço a Música. Posso assegurar-lhes que ela não se propaga nem pelo tempo ou pelo espaço que os homens conhecem. Seu movimento, misterioso, propaga-se por uma dimensão mágica, e assim sendo, ela não deverá estar escondida neste mundo. Onde estará, então? Não sei. Mas vejam: conheço bem os elementos essenciais à Fada-Música... O que quero dizer com isso? (Perguntava a si mesmo com as teclas brancas e respondia com as negras) Pois, no mínimo, posso presumir que as sete notas musicais – dó-ré-mi-fá-sol-lá-si – foram escondidas em algum canto deste universo e, encontrá-las e reuni-las certamente se constituirá na melhor pista para se descobrir o esconderijo onde Calibã aprisionou a Música...
– Não sei se entendi direito – disse Ariel. – Devemos tentar encontrar as sete notas musicais...
– E introduzi-las no flautim e soprá-lo – adiantou-se Oberon. – Assim, acredito, será revelado o local onde a Música se encontra aprisionada. Pediria que aceitassem a missão e partissem imediatamente. A nave interestelar já se encontra preparada.
– Nave!? – exclamaram Ariel e Ludi, a um só tempo.
Puck apontou para uma tuba pousada no centro do recinto, enorme e reluzente, e, pelo vapor branco expelido junto ao chão, já com os motores secundários ligados, pronta para a decolagem.
– Uma nave mágica, meus amigos, capaz de nos transportar para qualquer ponto do universo – disse com voz agudíssima.

***

– Será que eu realmente devo ir junto? – disse Ludi, cabisbaixo. – Eu não tenho medo, cães da minha raça são destemidos... Mas tenho uma preocupação: vocês são gênios e espíritos, enquanto que eu não passo de um simples cão jack russel... Na verdade, apenas minha mãe é da raça jack russel. Meu pai... Meu pai é um cachorro mestiço, se é que vocês me entendem...
– Um vira-lata – exclamou Puck, num gritinho.
– Não seja rude, Puck! – falou Ariel zangado. E, voltando-se para o cãozinho, disse muito seriamente: – Você também tem um gênio dentro de si, Ludi. Todo mundo tem um. Basta haver uma boa oportunidade para este se revelar.
– Isto é verdade! – assegurou Oberon. – E você Ludi, tem esta linda estrela branca na testa, emoldurada pelo marrom... Tenho a certeza de que, nesta missão, você será de vital importância, meu amigo. Afinal, quem dentre nós poderá farejar e descobrir onde o maldoso Calibã enterrou as notas musicais, senão você?
– Farejar notas musicais? perguntou Ludi, surpreso. – Oh, eu sinto muito. Nunca farejei notas musicais... Mas admito: adoro cavar buracos e conhecer novos cheiros.
– Ótimo! É o que basta! Venha! Suba na banqueta, aproxime seu focinho do meu teclado – ordenou Oberon. – Isso mesmo, meu rapaz! Agora, cheire esta tecla que vou abaixar... Esta mesmo, o . Agora fareje o ... Conseguiu? Bravo, Ludi. Você possui realmente um faro muito especial. Agora fareje o mi...
Assim foi: o piano abaixava uma tecla, dizia o nome da nota e Ludi a farejava. Farejou o sol, o , o si... Memorizou, enfim, o cheiro de cada uma das sete notas musicais...
– Bravo, bravíssimo! – exclamou Puck, que queria se desculpar com Ludi por aquela grosseria anterior. – Talvez seu pai seja mesmo um mestiço, mas de uma bela mistura de cão policial e perdigueiro. Você deve se orgulhar disto. Obteve os melhores dons de várias raças, Ludi...
– E, finalmente – disse Oberon – quero que levem consigo este roteiro de viagem que preparei. Acredito que ele os ajudará a encontrar o destino que buscam... E saibam: não importa o desfecho dessa missão, vocês já são heróis, os mais verdadeiros heróis deste mundo... Partam agora e boa sorte!
Emocionado, o velho piano estendeu para Ariel uma partitura, escrita, é claro, com claves, notas musicais e símbolos que, felizmente, Puck sabia ler muito bem.
Num segundo depois, com os pequenos valentes a bordo, a nave-tuba partia rumo ao espaço infinito.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

UMA AVENTURA ENCANTADA



Parte I

Por mais incrível que isto pareça, desta vez foi o silêncio que o despertou.Isso mesmo! Ludi, ainda de olhos fechados, levantou primeiro uma orelha, depois a outra e pôde ouvir muito bem, com sua audição magnífica, um silêncio de doer os ouvidos. Assustado, arregalou os olhos, pulou fora da pequena cama redonda, sacudiu a pelugem curta – branca com manchas marrons – e pôs-se a farejar o ar. Que coisa mais estranha! Teria perdido os seus maiores tesouros, a audição e o faro? Começou a latir, sem motivo, por pura aflição.
– Ei, amiguinho! Acalme-se! Você também percebeu, não é mesmo?
Assustado, Ludi voltou-se em direção à voz, que saía de dentro da gaiola, do bico do azulão.
– Mas então você pode falar? – perguntou ao passarinho, com as orelhas esticadas ao máximo, devido à surpresa.
– Ora, isso não me espanta – respondeu o azulão. – Falo tão bem quanto você... O problema é outro: não consigo cantar! Aconteceu alguma coisa...
– Que novidade é essa? Como não consegue cantar? – indagou Ludi, confuso – Eu sempre acordo com o seu trinado. Passarinhos cantam, cachorros latem... E estamos aqui conversando como dois seres humanos... Devo estar sonhando... Afinal, quem é você, azulão? O que está acontecendo? O que...
– Ei, ei, cachorrinho! Devagar! Uma pergunta de cada vez... Quer saber quem eu sou, eu lhe digo: sou o espírito do ar, meu nome é Ariel. Agora, quanto ao que está acontecendo, ainda não sei. Ao acordar, tentei, como faço todo dia, soltar um belo trinado. Estiquei o gogó, abri o bico e nada! Um vexame, um passarinho não poder cantar. Já imaginou você sem o seu faro, Ludi?
O cãozinho, num gesto, acariciou a ponta fria do focinho, cheirando a própria pata.
– Nem brinque com uma coisa dessas. Nós cães não temos boa visão. Ai de nós não fosse o excelente faro e, principalmente, os ouvidos aguçados... Mas, o que acha que aconteceu? Não consegue cantar mais? Eu poderia ajudar você, de algum modo?
Ariel colocou a cabecinha para fora, entre os ferros da gaiola.
– Pode. E deve. Abra a portinhola – disse docemente – Deixe-me sair daqui. Tenho que voar pelo mundo, investigar e descobrir o que aconteceu... Vamos, Ludi. Seja camarada, meu amiguinho...
Ludi balançou a cabeça de um lado para o outro. Seu dono adorava aquele passarinho e, certamente não iria querer ver o seu azulão por aí, solto, cortando o céu azul com o seu vôo, cantando sobre as árvores, brincando com os outros passarinhos...
Ariel parecia ler pensamentos:
– Ouça, Ludi! Se os homens, verdadeiramente, amassem os pássaros, não existiriam as gaiolas. Vamos, amigo! Abra a portinhola. Eu preciso sair para saber o que aconteceu, descobrir porquê não posso mais cantar...
Decidiu-se. Com a pata, num gesto preciso, Ludi ergueu a portinha da gaiola, por onde era colocado o alpiste. Nem acreditou que tinha feito aquilo. Seu coraçãozinho martelava no peito, instigado por uma mistura de emoção e de alegria.
Ariel, livre, sobrevoou o quarto e, encantado com tamanha felicidade, preparou–se para emitir o seu mais belo trinado, como forma de agradecimento. Fez a pose e o esforço: nada. Nadinha. Nem um ínfimo solfejo brotou-se-lhe do bico aberto.
– Tenho que partir, Ludi – disse, pesaroso. – Prometo, porém, que tão logo descubra a causa do problema, voltarei para lhe contar. Adeus, amiguinho. Espere por mim...
E voou pela janela, rasgando o céu que amanhecia.

***
Deitado sobre as patas traseiras, com as dianteiras espichadas adiante, Ludi permaneceu atento, cabeça erguida, os olhos cravados na janela, à espera do retorno do pássaro. Teve uma estranha sensação de que muito tempo tinha passado, mas o céu, lá fora, recusava-se a amanhecer completamente. Poderia o tempo parar? E aquele silêncio surdo, que invadia os ouvidos e se estalava interiormente, como uma dor fincando o coração? O mundo não parecia, de modo algum, real. Coisa muito grave, por certo, havia ocorrido...
Assim pensava, quando seus ouvidos apurados de cão detectaram um rumor de asas. Ariel pousava no parapeito da janela. Parecia aflito. Imediatamente de pé, Ludi pôs–se a latir, abanando velozmente o seu cotó de rabo. O passarinho, com a voz engasgada, exclamou assustado:
– Roubaram a Música do mundo!


***
– Roubaram a Música do mundo? – repetiu Ludi, franzindo o focinho de espanto.
– Sim, Ludi! Toda a música existente no mundo! Aqui, lá e acolá, em parte alguma não se ouve sequer uma simples nota musical – disse Ariel, desconsolado.
– E isso é assim tão grave? – indagou Ludi.
– Tão grave? Tão grave? É muito pior do que isso! – repetiu Ariel, indignado. – A música é essencial! Sem ela, não existirá a mínima possibilidade de sobrevivência neste planeta. Refiro-me aos humanos. Logo haverá, entre os homens, mais intolerância e guerra... Ah, querido Ludi! Somente o encantamento da Música – e tão-somente ela – consegue suavizar, de modo universal, o espírito humano. Se mesmo contando com esta suprema beleza, os seres humanos já são as biscas que são, sem ela, embrutecidos pelo vazio da Música, farão guerra, guerra, guerra, até a destruição total do mundo.
– Mas quem poderia ter cometido crime tão terrível assim, este de roubar a Música do mundo? – ganiu Ludi, baixinho, sentindo lágrimas brotando-lhe nos olhos.
– O Gênio do Mal, Calibã. Somente Calibã poderia cometer tão grande e cruel crime. Foi o que apurei nas ruas, nas florestas, nos campos e nas águas do mundo – disse Ariel, também sentindo uma gotinha de lágrima rolar-lhe peito abaixo, deslizando sobre as penas azuis.
– E nada pode ser feito? – perguntou Ludi, que, como todo cão, tinha em si um instinto policial.
Ariel saltitou, pulando e pousando sobre vários objetos do quarto. Só evitava a proximidade da gaiola. O espírito do ar pensava...
– Durante o meu voo de volta – disse, enfim – observei algo curioso, quando sobrevoava uma loja de instrumentos musicais. Um pequeno relâmpago brilhou no interior da casa como se tivesse piscado para chamar a minha atenção. Desci, cheguei até a vidraça da janela fechada e, por um instante, um lampejo iluminou o interior do ambiente... O brilho, porém, não se repetiu – mas sou capaz de jurar que alguma coisa ali dentro queria me ver... Ou, quem sabe, nos ver, Ludi! Vamos, venha comigo! Vamos até aquela loja... Se você me ajudar, poderemos entrar e, quem sabe, esclarecer o mistério. Sinto, em todas as minhas penas que ali acharemos alguma pista... Vamos, amiguinho, vamos logo, antes que seja tarde demais...
O faro policial de Ludi encontrava–se agudíssimo naquele momento. Sentia, nos pêlos, que Ariel tinha razão – e estava disposto a ajudá–lo. Apenas uma pequena dúvida, uma pontinha de medo que o assaltava, obrigou–o a arriscar uma última pergunta, antes de decidir sair para a rua:
– E esse Gênio do Mal, Ariel? Como é mesmo o seu nome? Você sabe como ele é? Qual a sua aparência?
Ariel estremeceu.
– Calibã! Dizem – piou baixinho – que ele se parece sempre com o nosso maior medo. Se isso for verdade, para mim, um pássaro, ele certamente se parecerá com um enorme e monstruoso gato...
(continua...)

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

A NOITE DO CORVO (conto erótico)


O tempo parou diacho o domingo não anda não acaba nunca já é quase meia noite e eu aqui sem sono que preguiça que pasmaceira de plantão atendi até agora só uma febre à toa eu bem que poderia estar em casa na minha cama com a minha mulher cadê o meu livro ah aqui na mesinha vou desligar a televisão não passa mesmo nada que presta esta poltrona antiga até que é bem confortável a única coisa que presta neste hospital é melhor apagar a luz do teto e acender o abajur aahhh que bom esticar as pernas tirar os sapatos essas roupas do bloco cirúrgico são ótimas melhores que pijama cadê o cinzeiro gosto daquele grande espere antes de fumar vou tomar um pouco de leite o famoso leite da noite será mesmo que botam nitro nele deve ser conversa fiada todo hospital que tem irmã de caridade tem essa história de nitro ué que livro é esse aqui em cima da geladeira caramba A Arte da Sedução um livro francês diacho deixe-me ler a orelha epa a mais completa explanação da filosofia do amor carnal e da volúpia no sentido de um paganismo epicurista e mundano diacho é claro que isso só pode ser do Psiquiatra aquele plantonista o homem é hedonista registrado está sempre dizendo para todo mundo que é melhor ter vivido que só se vive uma vez e ele é o exemplo do que diz porque se não for mentira o que ele diz ele faz e manda os outros fazerem um faça faça faça sem fim ele aconselha a todo mundo a fazer pois não se leva nada desse mundo viva e deixe viver danado aquela vez no clube ele me viu no vestiário tomando uma ducha espiou assobiou riu e disse Deus não dá asa a cobra se tivesse a metade do meu aparelho ele iria fazer miséria quase me xingou por eu ser tímido diacho pior que tímido ser um re-pri-mido ele frisou que merda faça faça faça ou você acredita que a vida dá duas três mil safras hem pamonhão e daí se é casado aliás casado se escreve com s e não com p não é mesmo ai ai melhor deixar o livro francês dele pra lá e voltar pro meu calhamaço alemão subir a Montanha Mágica comecei meio desanimado mas que epopéia agora estou gostando o Mann é mesmo um gênio o filho da mãe me capturou como não desfrutar da leitura olha aqui o Hans Castorp o personagem central sentindo que se há inércia e cansaço do corpo o seu espírito se mantém em excitação ativa como o meu agora com uma diferença estou num plantão pra lá de monótono miseravelmente só e nada mais longe da mente que imaginar-me num mundo encantado e que poderia me envolver no sonho de um fantástico sortilégio letal bah que pasmaceira só espreguiçando mesmo nada nada vai acontecer hoje exceto um ou outro chamado sem importância o que é até bom pois plantão com urgência grave é ruim e quando tem óbito é uma merda ai que preguiça e nada de sono vamos ao livro do Mann o grande romance que se passa num sanatório suíço no alto de uma montanha diacho no início a gente imagina que é um troço enfadonho incapaz de existir coisa mais fria mais glacial bobagem o livro tem momentos bons à beça diacho de volume pesado vou esticar as pernas sobre a banqueta assim quase deitado e apoiar esta montanha de erudição e mágica sobre o estômago pronto conforto total novamente um pé descalçando o outro esses mocassins são mesmo um achado e agora um cigarrinho tenho que parar tenho que parar já estipulei não passo outro aniversário fumando essa merda mata deixe-me ajeitar a claridade do abajur quem sabe agora a leitura me entregue ao deus do sono onde foi mesmo que parei ah deixei marcado aqui quando o Mann indaga sobre a Vida deixe-me concentrar isso parece importante afinal o que é a Vida pois ninguém sabe e eu muito menos mas com certeza isso lá não é Vida estar mofando sozinho e isolado num plantão de domingo cuja noite parece ter se escondido do mundo do universo numa dobra do tempo isso realmente não é vida convenhamos dá até vontade de rir pois esse negócio de plantão cabe mais em conta num capítulo sobre a morte a decomposição a decadência ou o que valha só rindo da própria miséria aliás rir da própria infelicidade é mesmo coisa que plantonista vive fazendo sozinho que diacho deixe-me retomar as linhas olha só que interessante aqui diz que a Vida é calor é uma febre da matéria um esforço delicioso e aflitivo igual à chama da vela sensual até a volúpia que a Vida é um impudor da natureza quase lascivo um secreto e voluptuoso movimento clandestino praticamente composto apenas de sucção e exalação e envolta desta coisa túmida composta de água de albumina de sal de gorduras que se chama carne humm carne que se converte em forma em imagem sublime em beleza que se emoldura de sensualidade e de desejo que coisa diacho posso até ver essa imagem da Vida basta baixar as pálpebras fechar os olhos um pouquinho e posso ver esta imagem vaporosa assim flutuante bem diante de mim próxima dos meus sentidos meu Deus uma visita de fim de noite aqui no meu canto pois ela entrou no estar médico e se volta sorrindo para mim certa de sua graça de sua beleza o que diabos ela veio fazer aqui no estar dos médicos fecho o livro e a cumprimento assim meio sem graça encabulado com um oi tudo bem e ela ainda sorrindo me diz um olá e eu tirando os pés da banqueta pergunto você quer alguma coisa que idiota eu sou claro que ela quer alguma coisa ó meus Deus o que tenho diante de mim que corpo que corpaço aquela roupa do bloco folgada deixa ela ainda mais gostosa diacho os seios forçam com rijeza juvenil o algodão da blusa que cheiro bom ela tem exala desejo de fêmea e está me olhando que olhos bonitos oblíquos de estepe de loba que brilho estranho e misterioso sim uma loba no cio eis o que ela parece ó que opulência de ancas e nádegas este corpo é uma promessa de delícias ela como alguém do hospital já comentou é capaz de parar trânsito e de fechar um quarteirão inteiro um bairro e que boca suculenta meu Deus ela usa um batom que torna o vermelho dos seus lábios mais atraente que o carmim ai ai boca carnuda entreaberta pronta para o beijo ai que vontade morder esta fêmea talhada a ter momentos supremos de desejo e gozo o que ela quer aqui afinal alguém já me disse acho que o Psiquiatra que o marido dela é um deprimido de marca não trepa mais mas que ela é discreta não dá a mínima pra ninguém sabe que é gostosa que tem poder sobre os machos e por isso não dá a mínima eu mesmo sei disso pois ela quando a gente se cruza por acaso pelo corredor nem me olha mal cumprimenta e agora ela se encontra aqui não é nenhum truque pois ela me diz sorrindo posso me sentar um pouquinho e eu claro que sim e ela se senta ao meu lado pertinho quase grudada sinto sua coxa magnífica encostando na minha posso lhe perceber a respiração sei que ela arfa ligeiramente e que os seios que forcejam para fora da blusa assim delineados são lindos ó posso ver a pele de seus braços nus e de belo torneamento com a pele revestida de delicados torvelinhos de lanugem rudimentar ela diacho insiste em me fitar ó meu Deus todo o seu movimento de curvas femininas é aformoseado imprimindo ao corpo em todas as linhas um desejo animal ó meu pau deu um bote está duro como rocha já devo estar molhando a cueca tenho certeza diacho o coração me martela na garganta ai perturbação e medo infinitos o meu sou casado se escreve com p diacho aposto que ela percebe o meu acanhamento azar azar mesmo assim posso até imaginar a corola rubra dos seus seios um umbigo delicado redondinho e o movimento do ventre e do tórax o regaço o triângulo místico as cavidades lubrificadas as glândulas ricas em secreções todos os elementos ávidos para procriar o hálito esquentado e umedecido diacho ela também olha para o meu colo vê a ereção tremenda até sorri e sem safadeza pois neste instante seus olhos parecem envoltos em trevas misteriosas e ardem como o cigarro que busco descansando no cinzeiro para me socorrer e ela me surpreende pedindo uma tragada enfio a mão no bolso da blusa desajeitado tiro o maço sua coxa se aperta ainda mais contra a minha não quero um cigarro mas apenas dar uma tragada no seu diacho tenho o hábito de morder o filtro me desculpe está molhado ela me olha muito séria eu sei e é muito melhor assim e toma a minha mão com o cigarro levando-a até a sua boca vermelha carnuda de modo que os meus dedos pousam sobre sua face e seus lábios e ela estremece e sorve o cigarro profundamente prende e só depois solta a fumaça bem devagar e como num sonho embebido de um inenarrável espírito de desejo e de aflição escuto-a dizer quase num sussurro quero você em mim e seus olhos ficam avermelhados enquanto me perscrutam com uma intensidade sobre-humana faça faça faça vou fazer mas o que é isso o telefone interno está tocando diacho tenho que atender os chamados do plantão são sagrados só um momento alô sim sim estou indo alguém na ala A com dispnéia e dor no peito pode ser embolia no pós-operatório isso mata tenho que ver mas volto logo que puder espere aí vou rápido rapidinho num pulo que coisa eu também tenho dor no peito e dispnéia mas de desejo nada de embolia só desejo minha nossa o pau não quer baixar pronto cheguei na enfermaria mas que diabo é isso ninguém chamou tem certeza de que ninguém aqui da ala chamou o plantão está bem está bem então vou retornar para o estar médico mas que alguém chamou ah isso chamou não estou ficando doido então boa noite boa noite e já estou voltando rápido voltando rapidinho o mais que posso não quero perder o sonho pronto cheguei ei mas onde diabos ela se meteu onde está ela meu Deus não é possível que não tenha me esperado ó ó ó merda merda parece que tomei um tiro no peito deixe-me sentar ó merda será que ela voltará hem ó meu Deus ela tem que voltar ó não voltará pressinto que não voltará minha solidão me reste maldita noite infinda que barulho é esse quem está aí será ela voltando tomara tomara ó não não o que é isso meu Deus um corvo caramba na janela um maldito corvo infernal grasnando sei lá o que está dizendo hem pode repetir a potranca passou arreada e ajaezada pamonhão e você não montou não fez não fez não fez miserável não espere ela voltar ahn never o quê never o quê poderia repetir grasnando direito ó ela não voltará eu sei eu sinto agora escutei não voltará nunca mais never more
Sérgio Mudado

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Assim nasce o erotismo


Escuta. Podes sondar a noite que nos envolve. Podes investir contra essa noite... Não sairás dela! Adão e Eva, quão atroz deve ter sido vosso primeiro beijo, para que nos gerásseis desesperados!” (Khayyám)

Conta a lenda que o pequenino Eros, encantador menino alado (e um bocado travesso), certo dia, no Olimpo, com expressão inocente, abordou o poderoso Zeus (que detestava ser tratado por a ‘vovô’), indagando: “Não compreendo, vovô! Concedeste aos humanos os olhos e permitiste que a beleza de tuas criaturas os ofuscassem. Deste-lhes a faculdade de ser felizes, e queres que renunciem gozar os bens deste mundo. Mas isso é absurdo! Falta alguma coisa. Criaste um jardim, um homem viril, uma mulher ondulosa e, ainda assim, aquilo parece vazio como uma taça derramada de néctar.”
Zeus admirou-se.
“O que achas que falta nesse jardim, meu encantador netinho?”
“O Desejo, vovô, o Desejo...”
O deus supremo, após um minuto de divina meditação, percebendo a argúcia da criança, não titubeou: “Se é assim, sei que poderás cuidar desse problema, meu pequeno Eros. Ponha essas tuas asinhas na imaginação e dá aos homens algo ainda além do próprio Desejo... Vá! Pousa neles o teu olhar, o querer demais... Desperta-lhes o regozijo, os gestos sonhadores, a fantasia... Anda! Parte. Tens agora importante missão a cumprir. Lembra-te, no entanto: não desconheço que és um menino caprichoso e tuas coisas nem sempre dão muito certo. Assim, ficarei de olho nas tuas traquinagens...”
E lá se foi o pequeno Eros, a mando do grande deus, e em sua cabecinha trêfega, mais e mais palavras flutuavam, tentando organizar-se: ‘Mistério’... ‘Engano’... ‘Feitiço’... ‘A presa deliciosa’... ‘Os artifícios’... ‘A ferida’...
Netinho danado, aquele menino. Mesclava, em sua natureza divina, o amor de sua mãe Afrodite, e a belicosidade de seu pai, Ares - o mais odioso dos deuses olímpicos, conhecido como o Senhor da Discórdia e da Guerra.
Havia, porém, um quê de singular na idealização do anjinho: Eros sabia que teria que inventar uma perfeição, pois tão-somente uma perfeição seria capaz de não deixar os homens permanecerem irreais, ocos, vazios, monótonos e assim, frívolos, a ponto de serem rejeitados pelo próprio Criador.
‘Devo’, imaginou Eros, ‘introduzir no jogo da vida dos humanos, em suas relações mútuas, um laço fadado a assumir um caráter de ardente intensidade... De tal modo, porém, misterioso que não haverá esperança nem probabilidade de sequer o próprio Zeus atingir e compreender a sua essência... (Agora devaneava solto, além da rebentação). Farei, num certo dia inimaginável, que a natureza humana recenda a folhas de mirto, fazendo com que os olhos dos homens brilhem o próprio sorriso da alma, e o vermelho de seus lábios torne-se ainda mais atraente que o carmim. E aformosearei os seus movimentos, imprimindo-lhes ao corpo a marca de uma promessa de delícias...’
Sorriu com os próprios pensamentos. E concluiu o devaneio: ‘Apenas é real a vida da alma e dos sentidos... ’
Pois aconteceu que, neste instante reflexivo, debaixo de sua cabeleira encaracolada, a nuca pinicou-lhe intensamente. Ao levar a mão atrás, para coçá-la, sem querer, Eros feriu-se na ponta de uma das setas de seu bem fornido carcás. Aturdido, observou o sangue rutilante brotar em seu dedo. Levou o ferimento à boca, sugou-o. Neste exato momento, sentindo o estranho sabor de sua própria carne, descobriu finalmente o que almejava, por completo: criaria, da necessidade extrema da alma e da carne, uma poção, uma espécie de veneno com o qual embeberia as pontas de suas setas. Um lampejo genial indicou-lhe que tal veneno seria constituído, não por substâncias químicas, para as quais, cedo ou tarde, se obtém um antídoto, mas por uma espécie de... De que?... De música, sim, isso mesmo... Música cujos acordes, abafados, de puro devaneio e desejo, erguer-se-iam dos campos mais primitivos e selvagens do ente flechado, levando-o a bailar uma dança hesitante, num bastidor profundo de seu ser, naquele espaço limítrofe entre a luz e a sombra, a bem-aventurança e a ruína, o resvaladiço e o permeável, o delicioso e o terrífico... E haveria alguma coisa nesta música que não se deixaria captar, fios inaudíveis que escapariam, sempre, prolongando-se além dos sentidos, estendendo-se infinitamente aos mais obscuros campos da imaginação humana.
Pronto. Estava criada a perfeição - o erotismo.
Sérgio Mudado

domingo, 19 de dezembro de 2010

Pachelbel Canon in D Original Instruments

A arte de vender um romance (II) ou a Barca de Gleyre

Monteiro Lobato, retomo esse grande escritor. Estou reencontrando sua obra infantil e, encontrando sua literatura adulta, fazendo uma leitura a lápis(para marcações) de A Barca de Gleyre - cartas de Lobato escritas ao escritor mineiro Godofredo Rangel ao longo de mais de quarenta anos. "Quarenta anos do mesmo amigo e mesmo assunto, que fidelidade..." Realmente um monumento erguido à amizade. Ainda voltarei a esta Barca (um interesse que vem exercendo em mim um magnetismo forte e ainda, enigmático), mas já indico, sem pestanejar, o livro Amigos escritos, de Sueli Tomazini Barros Cassal, editado pela Imprensa Oficial de São Paulo. No momento, considerando que este blog tem-se dedicado à criação literária, sua produção, distribuição e venda, pretendo apenas registrar que tais dificuldades são mais antigas do que imaginamos. Lobato diz a Rangel: "...nós não passamos de dois pulgões de roseira - eu um pulgão publicado; você um pulgão inédito." Ambos, porém, "inteirinhos, com os sonhos todos e a grande ânsia de criar."
Mas vamos ao que interessa e se refere ao título desta postagem. Sueli Cassal assinala a profunda admiração de Lobato por Balzac, a quem considerava "um gênio dos absolutos". Prossegue a autora de Amigos escritos: "No romance As ilusões perdidas, Balzac revela a sordidez e a mesquinharia do mundo literário e do jornalismo subvencionado, e as intrigas que envolvem a inserção do escritor no mundo capiltalista, onde o sucesso e a reputação são forjados artificialmente pelos detentores do poder." E, mais adiante: "Lobato também comungava essas ideias. Como assinala num artigo lembra que é inútil acreditar que as portas se abrem para o talento. O mundo das letras é também o mundo do tráfico de influências, da ambição desmedida, da musa Moeda. Em 1917, comenta com Rangel: Se um novo entra humilde, a pedir licença, todas as portas se fecham. É preciso aparecer de machado em punho, faca nos dentes e arrombar as portas a pontapés."
Fica aí o conselho lobatiano para os jovens autores. E, afinal, o que podemos fazer na vida além de dar o máximo de nós mesmos? O que pode muito bem incluir uns pontapés.
Quanto aos mais velhos, já atravessados pelo tempo de bem-estar físico e de saúde inabalável, pelo tempo de firmeza no passo e serenidade física, desaconselho os tais pontapés (exceto daqueles que podem se esquivar), que fatalmente acabarão em inúmeras visitas ao ortopedista e a sessões intermináveis de fisioterapia. Escutem, velhos! Le soir, o quadro do pintor francês Gleyre, passou a ser chamado pelo público de As ilusões perdidas, nome que acabou prevalecendo. Nesse quadro, a figura central representa um velho prostado, ao lado de uma lira abandonada. Com a cabeça curvada, o braço quedado, ele contempla, ao crepúsculo, uma barca que se afasta... A Barca de Gleyre.
Permaneçam assim, como o velho poeta, há beleza no abandono daquele gesto, contentem-se, suportar é tudo, ninguém falou de vitórias. Enfim: o que esperavam quando se meteram a exercer este ofício?
Sérgio Mudado

sábado, 18 de dezembro de 2010

Criação literária: O vício pela palavra



O sujeito da vontade está constantemente preso à roda de Ixion, colhe continuamente pelas peneiras das Danaides, constitui o eternamente supliciado Tântalo.
Schopenhauer




Webterapia. Esta nova palavra começa a ser discutida nos chats da Web e significa, causando certo incômodo, um tratamento especializado para pessoas “viciadas” em Internet. Este vício, admitido por muitos veteranos da rede, se conceitua plenamente, pois envolve um intenso querer e, na impossibilidade de satisfação, numa síndrome de abstinência bem definida: sem uma boa dose diária de computador, principalmente nas salas de bate papo (e, hoje, nas redes sociais) o internauta se vê acometido de uma sensação de vazio, de irritabilidade fácil e, nos casos mais severos, de franco desespero.

É bem certo que em grande parte do tempo do chamado mundo "real" esse internauta tem os seus pensamentos voltados para as coisas do chat e da rede, e não vê a hora de ter os seus olhos iluminados pela telinha, suas mãos ávidas pelo teclado e o mouse e o seu ser mergulhado profundamente nesse mundo fascinante, constituído, a rigor, por palavras (e, mais recentemente, acrescentado por postagens de música, filmes, fotos, etc.).

Viciados em álcool, cocaína, morfina e outras drogas, além do jogo, vivem fixação semelhante e estão sujeitos a síndromes de abstinência bem caracterizadas pela medicina. Também, o anseio pela droga, um querer incontrolável, exibe um padrão comum de busca de prazer: drogas, sejam depressoras ou estimulantes, agem como sedativos, produzem euforia e excitação, trazem desinibição, emoções, "sensações" novas e buscas que, por assim dizer, vão além do princípio de inovação.

Pode a palavra - esta unidade singular, mônada e mágica, a quintessência do chat - ser comparada às drogas? Eis uma pergunta curiosa e pertinente. Pois, participando dos chats sentimos, como na leitura de um livro, prazer e fruição, de alguma forma pelo amor à linguagem. O texto, ora superficial, ora profundo e intimista, torna-se objeto de fetiche e permanecemos ali, mergulhados na verdade da linguagem.

Já foi dito: a palavra faz o sentido, o sentido faz a vida. E todos sabem que vidas têm encontrado o seu mais profundo sentido nos chats. Mais: em que pesem os apelidos, as máscaras, o anonimato, as dissimulações, o relacionamento alcançado assume um aspecto extraordinário pois, ao contrário do mundo real, onde a relação se principia por uma visão exterior da pessoa e, somente depois ocorre a busca do conhecimento do interior, no chat o inter-relacionamento parte de verdades interiores, contadas pelas palavras digitadas. Ora, isso é extraordinário pela rapidez com que ocorre e mais ainda por ser um fenômeno cujo grande significado pode-se depreender nas palavras do filósofo do pessimismo: "Existem de fato duas maneiras opostas de se tornar consciente de sua própria existência: em primeiro lugar, numa intuição empírica, como se apresenta do exterior, como um ser infimamente pequeno, em um mundo ilimitado... Em segundo, porém, afundando-se em seu próprio interior, adquirindo a consciência de que se constitui o todo no todo, e o único ser efetivamente real, a se contemplar adicionalmente nos outros e no dado exterior, como num espelho."

Estaria aí a grande fonte de prazer e poder do frequentador do chat, a possibilidade de se ser o eu-total? Creio tratar-se de boa especulação. Não seria isto semelhante ao pensamento cabalístico de que a idéia de uma coisa, o nome e a própria coisa mesma são uma só coisa e, assim a palavra, prenhe de significado, sob o olhar humano entra em corporificações que marcam inúmeras camadas de significado?

Estudos neurofisiológicos têm demonstrado a participação de receptores cerebrais, onde atuam substâncias como a serotonina, a dopamina e outras, chegando-se mesmo a especular a localização dos sítios anatômicos de vício.

É curioso como algumas pessoas adquirem amor à leitura de livros na infância, se tornam, ao longo de suas existências, leitores vorazes desses tesouros, avançam no desordenado rio dos livros como navegantes solitários, com uma avidez de leitura que não descansa, nem de dia nem de noite. A palavra "amor" pode, aqui, perfeitamente, ser substituída pela palavra "vício". Não estamos, portanto, falando do mesmo assunto?
Amigas e amigos viciados em palavras, eis uma reflexão adicional: teriam os grandes escritores, os gênios, sítios cerebrais, sedes deste vício por palavras, bem maiores, ou mais desenvolvidos e complexos, e aí estaria escondida a fonte da criação - cujo mistério é ainda hoje absolutamente indecifrado?

Finalmente: a Webterapia deveria nos desintoxicar das palavras?

Sérgio Mudado
( apelidado Thomas, em um O Caixote, de antigamente)

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

CORTINA DE RENDA BORDADA (após a leitura de Os negócios extraordinários de Juca Peralta)

Dias atrás lhes ofereci um aperitivo para a leitura de Os negócios extraordinários de um certo Juca Peralta e agora tentarei passar direto à sobremesa, já que a leitura, para mim, foi um lauto almoço.

Vejo a leitura de obras de ficção de duas maneiras: 1) a das obras que nos impelem para uma leitura açodada, como se o livro nos empurrasse para o final – geralmente o gênero de suspense, por exemplo, nos obriga a procurar rapidamente o fim, porque, de certo modo, “temos que descobrir” o mistério; e 2) a daquelas obras que nos levam à maturação de muitas das idéias que estão ali e nos levam a querer saber mais não apenas sobre a própria história, mas também como ela foi construída.

Os negócios extraordinários de um certo Juca Peralta pertence ao segundo tipo. É um livro cheio de suspenses, perigos, incertezas, ameaças e, no entanto, nada disso é irrefletido; ou seja, não vamos de cambulhada atrás dos acontecimentos. Somos obrigados a saborear cada uma dessas aventuras porque são elas que formam o amplo mosaico sobre o qual os personagens se movem. E como não se movem numa única direção, nem em tempo linear, o(s) espaço(s) e o(s) tempo(s) nos carregam para o desconhecido e nos levam e trazem para pontos aparentemente conhecidos, mas agora mais significativos, porque pudemos refletir sobre eles.

Assim, de uma ponta à outra da obra, seguimos passo a passo um certo Juca Peralta, até sermos, aí sim!, atirados no turbilhão que também o arrasta.

Dito desta maneira parece uma obra de difícil leitura. Mas Juca Peralta é um grande enganador, um sedutor treinado nas rodas boêmias da Belo Horizonte dos anos de 1930 (fim da belle époque que ainda está presente em muitos prédios de BH). Ninguém resiste aos encantos desse personagem ao mesmo tempo indignado, cínico, corajoso que não nos dá tempo de chorar o leite derramado e já parte para outra. Vamos no trem do sertão, no trem fantasma-carnavalesco que circula nas madrugadas e com Juca entramos pelas brenhas de um Estado das Minas Gerais tão cosmopolita quanto BH e tão cruel quantos as veredas de seus sertões. Tudo convive neste romance e se desdobra em novas paisagens, novos sentimentos, velhas e renovadas vidas - angústias e esperanças diante de seus começos e de seus fins. É preciso ler para crer.

A capital – Belo Horizonte – recebe um carinhoso tratamento, recuperando suas paisagens já perdidas. Os personagens que circulam ali e nos lugares visitados por Juca em suas viagens são tipos mineiros que ora batalham por preservar a herança de uma história perdida ou mal contada, ora para exemplificar as eternas rixas políticas que acabavam em morte ou coisa pior. Mas são as surpresas do romance que é preciso saborear. Elas vão surgindo lentamente, no trote manso de um cavalinho muito bem treinado a quem foi destinado puxar sobre o palco de nossas mentes de leitores uma cortina de renda bordada.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Dois médicos encantados pela arte de dois médicos. Ou: Veredas para Bom Despacho.


(Texto e poema baseados, respectivamente, da obra de Pedro Nava e de Guimarães Rosa.

O Riobaldo, naquele jeito dele, ensina o que é amigo. É bonito, de doer, aquilo. Amigo meu! O Antônio Angelo é. Quase basta. E eu o conheço? Ora, ninguém conhece o outro. É meu compadre. Nasceu no Bom Despacho, eu no Belo Horizonte. Temos, no comum, esse B, Bom e Belo: o B que desenha uma Bunda boa, cheia. Pacato, irônico, cardiologista, poeta, prosador. E amigo, já disse. Às vezes me tira de casa, me leva no jipe pro campo, me mostra belezas que não sei ver. Aí, médico não é mais, é só poeta, é só prosador. Vai se transformando no Vidigal Matos. Adiante, nem jipe. Monta no seu cavalo Feitiço, de dois andares, toma um galope perigoso, ri do meu medo, vai apontando aqui e acolá, os azuis cada vez mais puros das serras, as montanhas douradas, de prata, de verde esmeralda, as cintilações, a mata, Pode sentir o ar úmido? Poderia, se conseguisse respirar. Quando chegaremos ao aonde? Ele ri. Só mais um terço de légua. E seguimos cavalgando aquele solo ilustre. Vou te mostrar uma beleza antiga, do Nava, que você tanto gosta. Tenha um pouquinho de paciência. E prossegue, é agora, totalmente o outro, que eu também não conheço, mas é o Vidigal Matos, de conto premiado, cavalgando no cavalo Feitiço, e querendo me mostrar uma beleza. Lá, no aonde. Pronto, vamos parar um pouco aqui, pra ver o sol iluminar o rio São Francisco, é ali, nessa direção, aponta, e eu apenas vejo um mar de montanhas, umas depois das outras, depois das outras, depois das outras... Ficamos suspensos num silêncio, então miramos a maravilha do Nava, a bola do sol vai descendo no céu limpo. Quase tocando o horizonte, encostando seu fio na montanha. Mas às últimas claridades, um pouco para cá, acende-se de repente um longo fio serpente de fogo que coleia lampejo nem o tempo de se contar até quarenta e cinco para se encantar apagada e sumida no chão adentro da noite que cai. Tinta cor do sol poente entornada no chão, escorrendo. O prodígio, explica Vidigal, deve-se à batida obliqua dos raios poentes no espelho das águas do São Francisco que incandescem e são vistas lampejando nas léguas e léguas para lá da sua Bom Despacho...

Sérgio Mudado


MUNDOS GUIMARÃES

Belo Horizonte acorda chuvosa.
Da janela vejo ao longe semi-ocultas
encostas por onde casebres se espalham
de forma promíscua,
degeneração de matriz cancerosa.

Sufoca-me a metrópole.
Na estante alcanço Guimarães Rosa
onde encontrar cheiros e climas:
comunhão possível com raízes interiores,
confluência de riachos, matas e trilhas.

...córregos fugindo brenhas adentro, buritizais,
patuléia miúda (muito trabalho e rala existência),
brancas noites de plenilúnio, reboliço de brisas flauteando no bambuzal,
terras altas além do Urucúia, taperas em vilarejos desolados,
garrixas cochichando no beiral do telhado,
manhã invernosa, dois cabras sentados à porta tiritando de febre e ciúmes
(“Esta noite sonhei com ela, bonita como no dia do casamento” – diz um),
quintais onde a erva daninha se espalha, tiriricas,
o manchão laranja do cipó-de-são-joão no barranco
que nem tinta cor do sol poente entornada no chão,
vento viajeiro ondulando a extensão do capim gordura,
cercas de pedras, bois no pasto, ecos de tiros nos socavões;
meio-dia: um esmorecimento, um não-querer nada,
árvores ressequidas erguendo raquíticos galhos
contra o céu de azul coruscante – ali vai um cão magricela,
urubús em re-círculos bailarinos no anil distante -
zunir de varejeiras, azuis brilhozinhos azuis de asinhas,
rios sem margem, barco se esquivando no breu da noite;
moça na janela, boiada passando
(cavaleiro olha-olhando espichado,
sonhando com o alvo véu de filó, rendas, camisa de cassa branca,
e, ao depois, filhos, gadinho, galinhas no terreiro,
horta, pomar e um cachorro fiel anunciando forasteiros).

No meio da rua o redemoinho ,
e dentro dele - ou vigindo nos crespos do homem - o sem nome.
No Pirapora, Diadorim não se desveste,
atento aos despistes de Riobaldo...
Corguinho deitado, vereda sem nome, buritis em fila,
Riobaldo oferece mimo, pedra safira de Arassuaí,
que de coração Diadorim agradece –
esperar até acerto de contas com Joca Ramiro;
Riobaldo conta favas e refavas
e pensa na moça clara da Fazenda Santa Catarina –
(e a outra, para todos formosa, de saia cor-de-limão,
florzinha amarela do chão, prostitutriz, Nhorinhá).

Por algum tempo, Belo Horizonte é sombra esquecida,
mas que forja matreiramente suas ruindades
ruminando segundas-feiras desenxabidas.
Eu divirjo – resistencioso às sovinices do tempo –
e me esquivo de retornar à janela,
na desvontade de presenciar o mundo.

Antonio Ângelo de Oliveira

domingo, 5 de dezembro de 2010

A dança das doze princesas

(Para a turma de medicina de 1973 da UFMG, com ênfase aos amigos e colegas do Hospital Júlia Kubitschek, Cláudia e Ronaldo)

Tinha apenas 13 anos. Assustada, encontrava-se encolhida num leito de enfermaria do antigo sanatório. Tinha acabado de se internar. Ele, de imediato, percebeu o medo intenso no seu olhar. De animalzinho acuado. Transferida de outro hospital, privado, vinha com o diagnóstico estabelecido: um fungo infeccionava-lhe profundamente o corpo. O tratamento seria longo e caro. Por isso fora transferida para o serviço público... Nunca, em toda vida, tinha saído de sua casa, no interior do Estado, de perto de seus pais, de sua família. Seu terror, mudo, parecia encher de desespero a tarde que findava. Medo. Medo. Procedeu ao exame de admissão. Medo. Pavor. Tranqüilizou-a como pode. Fez a prescrição que devia e foi atender a outros pacientes... O plantão prosseguia. Quando o manto da noite trouxe os escuros que aumentam a solidão e o medo, ele inquietou-se... Céus! Não podia deixar de pensar naquela menina assustada... No pavor que deveria estar experimentando. Decidido, saiu do estar médico, dirigiu-se à enfermaria. Postou-se aos pés da cama da garota, sorriu, perguntou-lhe se gostaria ouvir uma história. Inibida, ela acenou um sim com a cabeça. Ele então começou, Era uma vez, há muitos anos, num reino distante... E, voz modulada, narrou um conto de fadas, enchendo a enfermaria de princesas e príncipes, de florestas de prata e de ouro... De um baile fabuloso, num castelo iluminado do lago... De música... A Dança das Doze Princesas... Tal e qual costumava contar para os seus próprios filhos. Então, fez-se a magia. Nos olhos da mocinha, o susto e o medo cederam ao encantamento e ao sonho... E, ao finalzinho da história, ela, exaurida pela doença e pelo medo, dormia. E sorria em seus sonhos. Com passos leves, ele saiu da enfermaria, ganhou o corredor, de volta ao estar. Também sorria: sentia-se mais médico. Mais do que quando ali entrara. Aliás, parecia um anjo...
Sérgio Mudado

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

O valor de uma prece manniana

Recebo do meu editor uma notícia alvissareira, que transmito com prazer: o Juca Peralta começa a ficar mais disponível para os leitores. O autor, o editor, o distribuidor e o livreiro fizeram o seu dever de casa. Agora é com o leitor. Parece ser transferir muita responsabilidade, não é mesmo? O próprio romance, porém, em suas duas primeiras páginas, demonstra a importância cabal do leitor. Assim: "A mágica pode acontecer sem a presença do mago, que pode estar operando a uma distância formidável do seu objeto. Nenhuma forma de magia, no entanto, pode ocorrer sem testemunho. Ou, de outro modo: um fato inusitado, um acontecimento extraordinário, uma maravilha, nada disso tem sentido, forma, cor, sabor, existência, enfim, sem a presença do espectador." Sem a sua presença. E olha que maravilhas e acontecimentos extraordinários polvilham esse romance. Você é muito bem-vindo!

http://www.libre.org.br/titulo_view.asp?ID=10849


quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

A luz do cais

Para Renato Mudado



Enfim, uma festa de fim de ano razoável no Departamento, salgadinhos finos e, admita-se, aquela delicada musse de abacaxi com passas, oferecida sobre tenros pãezinhos árabes, fora maravilha de se regalar, saboreamos o acepipe de modo vergonhoso, se me permitem exagerar um pouco. Pena ter se mesclado àquele xarope branco alemão que insistem em chamar de vinho, ainda com qualidades e predicados, sacrilégio, puro sacrilégio. Quebra de regozijo? Nem tanto: o pessoal dançou, aplaudiu, conversou sobre solidariedade, paz, ventura, essas coisas, mais a puxação de saco dos chefes, o que acontece em todos os lugares e todas as eras... Valeu, no entanto, tudo tem valido nestes tempos em que o viver transformou-se em sobreviver, e sobrevivemos à duras penas, concordam? Principalmente no Natal, pois aí o bicho pega e uma das patas desse bicho chama-se depressão, com unhas arranhando a torto e direito, sem dó, ora, você sabe muito bem do que estou falando.
O que não sabe é que já saí da festa e lá vou eu, nesta noite de cerração, lá vou eu enternecido de paz e solidariedade, subindo a alameda, a caminho do estacionamento do hipermercado, onde estaciono o meu carro...
Então aquilo: a visão de uma cena, logo à entrada do supermercado, faz com que uma fria lâmina, do medo, me penetre até a medula. Um segurança, alto e forte como um carvalho, está detendo uma velhota, Volte, tia, vamos voltar, e, enquanto um de seus braços cerca a tentativa de avanço da senhora, a outra mão já leva o rádio à boca, Temos um 174 aqui, na saída 2, câmbio... Tia, vamos voltar lá pra dentro, tia, vai ter que devolver... Não pode ir se mandando assim, tia... Ela, com duas sacolinhas agarradas ao peito, protegidas como bebês, tentava romper o cerco de carvalho, Moço, deixa eu ir embora, deixa eu ir embora, não tirei nada... Tirou sim, tia, venha, vamos, não complique as coisas...
Contemplei a cena, meu coração, acelerando, fazia ainda mais pesado, mais temeroso e mais opresso de presságios. Tratava-se de uma velhota surrada pelo tempo: alta, robusta, com blusa e saia sem cor definida, um desses beges escuros, de sujeira disfarçada. Só não tinha a boca totalmente murcha, pois dois enormes dentes inferiores projetavam-se de gengivas retraídas, quando repetia, altiva, olhos miúdos e sem medo, Me deixa ir embora, moço, deixa eu ir, o que é isso?... E falava apertando com mais força as duas pequenas sacolas contra o corpo.
Novos seguranças chegam, Câmbio, câmbio, que estupenda movimentação, furto é furto, e a velhota está agora completamente cercada, Câmbio... O frio do medo continua trespassando minha medula, explico esse pavor: a ditadura militar colheu-me no início da adolescência, ah, aprendi, como aprendi a ter medo de botas, de quepes, de polícias, de rádios de mão, dos malditos câmbios operantes positivos, putamerda, ainda hoje, os cabelos já nevando a cabeça, sinto o coração disparar quando, numa simples blitz de trânsito, um meganhazinho de merda me pede documentos...
Medo.
Sei que muitos de vocês, de cabeça já nevadas, ou, pior, carecas, sabem muito bem do que falo. E me entendem.
Permaneço, atraído como um sapo pela cobra, a observar a cena, Me deixa ir embora... Não, Tia. Vamos voltar pra dentro. Não me obrigue...
Pague pra mim, moço...
Pague pra mim.
Ela, a velhota, dirigiu-se a mim. Sobressalto.
Não tenho dinheiro..., tartamudeei. (O que era verdade, não trazia nada na carteira, exceto umas poucas moedas, troco de dois maços de cigarros que comprara antes de ir para a tal festa de fim de ano, putamerda, a musse de abacaxi, misturada ao vinho, subiu-me à garganta, azedando.) Voltei-lhe as costas, sim, voltei-lhe as costas, desci, célere, a rampa rumo ao estacionamento, um cigarro já era tragado com sofreguidão.
Entrei no carro, respirei fundo e, com os nervos mais ou menos tranqüilizados, dei a partida. Antes de me arrancar dali, não sei por que cargas d’água, eis que, de súbito, sobreveio-me, à mente, uma cena remota de minha vida, fui arrebatado para uma certa hora e um certo lugar, acontecera, repito, havia um bocado de tempo, mas surgiu-me como uma impressão vigorosa, de intensidade... Era um recém-formado e acabara de arrumar o meu primeiro emprego, no Departamento. Vocês se lembram dos primeiros salários, não é mesmo? Produzem sonhos e assim, em sociedade com o meu irmão Renato, comprei o primeiro carro, um fusquinha 66, vermelho desbotado, bem ruinzinho o miserável, no entanto, nosso. Meu e do Renato. E era lindo.
A cena ocorreu ao término do expediente, quando, juntamente com um colega de serviço, esperava pelo irmão, que viria me buscar no nosso fusquinha, recém-adquirido, bárbaro. Éramos todos jovens, sonhos escondidos no coração, a Ditadura amordaçando e ferindo o que podia. No passeio, enquanto aguardava o Renato, meu colega e eu espiávamos o trânsito da avenida. Então aconteceu de um pneu de carro furar justamente ali. A mulher que dirigia o veículo conseguiu levá-lo para o retorno aberto no canteiro da avenida, bem defronte a nós. Meu colega, sorriso maldoso, logo disse: Vamos ver como ela vai se virar com esse pneu... Concordei, tolamente, e ficamos a observar a luta da mulher com o macaco, chave de roda, esforços grandes para a sua fragilidade, o colega sorrindo, eu, besta, sorrindo também, e assim estávamos, a gozar o espetáculo, quando o fusquinha 66 chega, atravessa a passagem do canteiro, estaciona, seu motorista desce do carro, sequer olha para nós, dirige-se rapidamente ao carro da mulher, e num átimo, troca o pneu furado, ajeita o resto das coisas no porta-malas, a mulher agradece, ele apenas acena a cabeça, atravessa a rua, agora em minha direção e diz: Vamos embora?
Fomos. Em silêncio.
Arranquei o carro, diacho, vou me mandar daqui, nada tenho com isso, com aquela mulher das sacolinhas, merda, merda, se não voltar lá não durmo nunca mais.
Freio. Tenho a testa suada.
E tenho também o meu cartão de crédito, pago aqueles trecos, porra. E pronto.
Estaciono, novamente, desço e a passos rápidos e decididos, volto ao local do crime.
Lá estava ela, perto de um dos caixas, ainda altiva e cercada por seguranças, dizendo, com os dois dentões inferiores sobressaindo, A gente não leva nada deste mundo, não levamos nada, nem eu, nem você, nem ninguém... O segurança-chefe, no entanto, retrucava, Não se tira o que é dos outros, tia... E ela, Mas aqui tem muito, moço, tem demais, tem de sobra, não sou ladra. E o outro, Mas o hipermercado não é nosso, tia, se quiser levar tem que pagar...
O que ela tirou?, perguntei. Um dos seguranças me puxou para o lado, Doutor, não se preocupe, ela sempre faz isso, é meio louca, sabe? Roubou picanha e lingüiça defumada, esperta, não? Ela está sempre aí... Olho para a velha, não se leva nada deste mundo... E os dois dentes imensos pareciam contestar isso, ela os levaria quando morresse, Ela é esperta, doutor, picanha, lingüiça defumada, bico fino, não caia nessa esparrela, é sempre assim, ela busca um otário, nós manjamos ela, está sempre aqui... E a velha, cansada de dizer que nada se leva desse mundo, que uns pedacinhos de carne não fariam diferença para aquele mundão de hipermercado, mas faria diferença para os seus netos, abaixou a cabeça, pela primeira vez. Cedia.
Sim, eu tinha o cartão de crédito no bolso. Mas não sou otário. Picanha, lingüiça defumada? Que espertalhona, é louca, mas sabe escolher o que há de melhor... E é contumaz, diacho. A musse subiu o esôfago novamente, azedou tudo. Não esquenta, doutor, ela está sempre aí, ladra, contumaz, só pega coisa boa, por que não escolheu músculo? Tinha que ser picanha?...
Fico zonzo, afasto-me da cena, não sou otário, não pagarei aquilo, picanha, não pago, se ainda fosse músculo, mas picanha!... Sigo em frente. Estou um pouco confuso, mas sigo em frente. Quero olhar para trás, mas sigo em frente, não olho... Chego ao carro, um fusquinha 66. Renato está ao volante, ele não titubeara um só instante, chegou, viu e trocou o pneu. Vamos? Sim, vamos. Não sou otário, vamos, em frente, vamos, nada levamos mesmo deste mundo...
Está escuro e nublado, o fusquinha avança, noite adentro. Não enxergo um palmo além do nariz, mas o fusquinha vai célere. Não enxergo, até que um clarão ilumina-me o cérebro e então percebo: o Renato, ele teria pagado, claro que sim, redimiria a dignidade daquela mulher, não daria confiança para os seguranças, nem para ninguém, apenas faria o que deve ser feito, por isso ele avança sem medo neste breu de vida, ele se guia pelo retrovisor, como aquele pescador que na madrugada escura e nebulosa, avança mar adentro, seguro, guiado pela luz do cais de onde partiu.
Olho para trás...
A escuridão do cais preenche o vazio do meu ser.
(O Caixote, dezembro de 1999)

terça-feira, 30 de novembro de 2010

A arte de vender um romance

Tenho comentado aqui, de maneira lúdica, sobre o processo de criação literária. No entanto, prestem atenção vocês que querem publicar! Escrever um romance é trabalhoso. Editá-lo, sem custeamento, é quase impossível. Distribuí-lo, estou me convencendo mais e mais disso, absolutamente impossível. Vendê-lo, então, nas lojas, já que não há distribuição, um milagre do santo das causas impossíveis. Com o surgimento da primeira resenha de Os negócios extraordinários de um certo Juca Peralta, de Edith Piza, recebi alguns e-mails, principalmente de São Paulo, perguntando-me sobre como adquirir o livro, sem ser pela internet. Sinceramente, não tenho resposta. Praticamente todos os dias entro no site da Livraria Cultura e lá, apesar dos milhões de exemplares que a grande livraria dispõe para o público, ainda não há sequer rastro do Juca Peralta. O mesmo se sucede com outras importantes livarias. Aqui em Belo Horizonte, além da Crisálida, o livro se encontra na livraria da Cooperativa Médica. Peço-lhes que não desistam do romance, por essa dificuldade inicial. Esta obra, tenho certeza, irá proporcionar boas horas de entretenimento ao leitor. Assim, esperançoso, deixo, para todos, uma lindíssima mensagem, de redenção, do meu autor preferido, quando lidou com o Diabo em pessoa, no Doutor Fausto. Ouçam, que beleza:"Nada mais acontece. Silêncio e noite. Mas o som ainda suspenso no silêncio, esse som que já não existe, que unicamente a alma prossegue escutando, e que arrematou a aflição, ele muda de sentido e se ergue como uma luz na noite." (Thomas Mann)

domingo, 28 de novembro de 2010

Tons de criar



Para Anette Lomaski (Noel)
Para os criadores do O Caixote
Para Monteiro Lobato

"A verdade é uma mentira bem pregada."
Emília, Marquesa de Rabicó

I

Uma advertência: o leitor – e aqui me refiro ao leitor de O Caixote, tão afeito, de maneira geral, ao processo criativo – esse leitor caixotesco deverá ficar atento aos fatos estranhos e até mesmo espantosos que lerá nos parágrafos seguintes e, portanto, que se cuide, evitando qualquer malefício que disso possa advir.
A história, no entanto, acalme-se, não é, de modo algum, de terror. Quase todos conhecem a Noel, a sumo, uma peste de mulher que freqüenta a salinha 1 de bate-papo e também, em contos, este O Caixote, da gata vermelha & Cia. Pois a Noel, a escritora, em que pese ser uma metralhadora que gira e dispara descomposturas fuzilando, na sala, gregos e troianos, tem uma delicada peculiaridade: gosta das palavras – e gosta pra valer. Com elas brinca como se fossem pedacinhos de massas multicoloridas na mão de uma criança hábil. De seus dedos, as palavras digitadas escapam como crianças em algazarra no recreio, rodopiam brincando de carrossel, libertam-se como passarinhos soltos no azul infinito. Dom reconhecido, não é de se estranhar que Noel, a normal, seja a autora de um romance denso, de trama delicada, que narra a saga de uma personagem chamada Edla, uma menina judia, de inteligência aguda, perspicaz e sensitiva e – o mais lindo – dona de uma fantasia capaz de criar um maravilhoso parceiro imaginário nomeado Tom – com quem divide as encrencas e todas as aflições presentes na infância... Infância de uma criança especial, assinalada na testa com um dom...

Ouça o canto de Edla:
“Nos finais das tardes, Tom se sentava na beirada da janela e nós tínhamos conversas longas e formidáveis (...) Quando, anos mais tarde, descobri que muitas crianças tinham amigos imaginários, foi constrangedor. Não me agradava ter nada em comum com pessoas normais... (...) Eu mentia muito para Tom. Dizia-lhe que tinha um preceptor, e que eu sempre colocava aranhas e outros bichos asquerosos em seu chá...”
Querido leitor, ponha tento nisto: uma primeira confusão já pode estar se principiando e devemos, rapidamente, desfazê-la. Acontece que eu também, na sala 1, tenho o apelido de Thom e se este relato fosse lido em voz alta, quem ouvisse Tom (da Edla) ou Thom (de Thomas), ouviria a mesma coisa, esse agá, aí, importa apenas aos olhos, enxerga-se viril, mas aos ouvidos é inócuo, surdo.
Pois o Tom da Edla, um ser sentido situado fora dela, é puro interior, o tesouro mais recôndito, a própria semente da criação... Ouça a menina falando dele, e o fazendo, por assim dizer, usando palavras delicadas como fios de luz de asas de borboletas adejando - como um poema soprado ao vento da saudade:
“Eu ficava mais calma quando Tom estava por perto. Com ele tagarelava o tempo todo por telepatia. Eu gostava que ele me contasse as prováveis histórias por trás de cada uma das capas de livros que eu via nas livrarias, a caminho da escola. Depois de cada uma dessas conversas, eu atazanava os meus pais até que eles comprassem o livro em questão, e o lia avidamente à procura da história que Tom me contara. Aí, eu contava a Tom a outra versão: aquela do autor.”
(Oh! Bonito com um adágio beethoviano.)
Outra diferença: se o Tom de Edla conta histórias lindas, que nunca leu, o Thom aqui, outrora também um contador de histórias, anda, nos últimos tempos, meio ressabiado com as palavras, que com ele não mais querem se divertir, ou tão-somente querem brincar de esconde-esconde, de buscar a escuridão, de fugir de entrar em sua luz...
Ah, Edla! Criativa, independente, vivendo em um tempo em que tão-só se deve viver em paz e harmonia com um mundo de fantasia, saía do círculo da inocência e, precocemente experimentava o sabor amargo dos pequenos dramas, de peso imenso, como se a vida adulta, com as suas terríveis ameaças e desesperanças, lá do futuro, já rosnasse para ela, forçando, extemporaneamente, a meter-se no presente da menina.

Foi quando brotou, sem quê nem por que, dentro do deserto que anda expandindo-se em mim, a idéia de um conto... Mas, preste atenção: um conto, caro leitor, a ser escrito pela própria Noel, pois a idéia versava sobre a Edla e o seu Tom. Roteiro simples: Edla sofreria alguma crise existencial, uma descrença de Deus, por exemplo. E nesta crise de fé, ouviria, sem querer, algo sobre a Cabala – o misticismo judeu – com o seu sentido mágico, na qual as palavras têm grande poder. Pesquisando a respeito, a menina acabaria por exigir do seu Tom a criação de um golem, uma estátua de barro, a ser vivificada por palavras. E, neste gesto de criação, recriaria a si mesma...
Pelo ICQ contei e passei um resumo desta idéia para a Noel.

NOEL: Ora bolas, você já tem o conto, ele é seu, por que não o escreve, Thom?

(Ai! Por quê? Tenho dito aqui a você, leitor: porque as palavras, que antes vinham à luz tão rapidamente, como bolhas desprendidas do fundo escuro do mar, atingindo a superfície e, sob o sol, tornadas borboletas, voejando coloridas, hoje, semelhantes a morcegos ariscos, fogem para bastidores internos, desaparecendo através de fendas, mergulhando em escuridões inacessíveis à luz, onde não me atrevo a penetrar...)

THOM: Mas Noel, como posso escrever este conto? A idéia é para uma menina, uma menina judia... O conto é seu, escreva-o, dedique-o a mim, se quiser...

NOEL: Você não pode ser uma menina judia, Thom? Que merda de escritor é você, que não pode ser uma menina judia? Escreva-o. Depois quero dar uma olhada no resultado, sinto-me até honrada... Não some não, beijo, estou indo, antes que esta conversa fique ainda mais chata. Fui...

(Que merda de escritor eu sou, que não posso ser uma menina judia, hem?)
II

De Edla:
Eu me sentia enganada. Depois de terem me feito ler todo o Velho testamento e estudá-lo, eu descobri que um tal de Jesus Cristo tinha nascido para nos salvar.
– Vó, o que é o Espírito santo?
Minha vó se encheu de energia para responder uma pergunta tão católica.
– Você não acredita nisso, não é?
– Como eu vou saber? O que é afinal o tal Espírito Santo?
Minha vó veio com uma conversa mole que tentava me convencer que o Espírito Santo era a pomba que saíra da Arca de Noé.
– Mas Noé existiu, não é mesmo?
– Claro.
– Então a pomba também.
– Mas ela não é o Espírito santo.
– Então, quem é o Espírito Santo?
Aquele negócio de pomba-gira não tinha me convencido. Deus até podia ser pai e filho, mas uma pomba, não.
– Vô, o que é o Espírito Santo?
– O espírito santo não existe, é coisa de católico.
– Católico não existe?
Meus avós cansaram-se de responder aos meus questionamentos.
– Pai, católico acredita em Deus?
– Em outro deus.
– Mas Deus não é um só, onisciente, onipresente e onipotente?
– É.
– E por que os católicos não percebem o óbvio?
– Edla, você não andou lendo o novo testamento, andou?
– Eu pensei que era uma releitura mais moderna.
Enfim, ninguém conseguiu me explicar nada. Deram um nó na minha cabeça e eu comecei a achar que esse negócio de deus era, como eu supunha, o maior engodo.
(...) Deus não existia... (...) Não que eu me considere melhor que a idéia de deus, mas eu confiaria mais no taco da Emília – Marquesa de Rabicó.

III

Pronto, pela própria Edla, já tenho uma crise existencial adequada, principalmente para uma menina judia: desconfiar da existência de Deus. (Eu próprio, quando menino, estudei no vetusto Colégio Batista, onde, uma bondosa reitora americana, uma dona Benta de óculos de ouro, que parecia conversar diretamente com Deus – mas, antes de tudo, uma formidável contadora de histórias – ao narrar as passagens bíblicas do Antigo Testamento, conseguiu divorciar-me da figura de Deus, de um deus cruel, vingativo, que eliminava cidades, que lançava pragas pavorosas, que tinha predileção por apenas um povo, dentre mil sobre o planeta, pouco se dando que para isso precisasse arrebentar os filisteus, os egípcios e os brasileiros... Imagino que, para um cristão-de-mentira como eu, deixar de acreditar em Deus não deve ser tão terrível como seria para uma menina judia, que suporta um peso de tradição que remonta ao Éden, de um Deus presente, que aparece aos patriarcas como uma sarça ardente, um Deus que conversa, estipula mandamentos, elege um povo e, por assim dizer, torna-se quase palpável...)
Discreto leitor! Espero que, neste momento da narrativa, você se encontre tranqüilo e bem disposto, pois o assunto a seguir, apropriado para pessoas maduras, é delicado e sigiloso: tivesse eu juízo, manteria silêncio. No entanto...
Não é difícil imaginar por que diabos essa menina – Edla – de rosto semeado de sardas, dada a peripécias imaginárias, dona de uma aguçada curiosidade bisbilhoteira, teve acesso a um velho livro, primeiro farejado, depois espiado e, enfim, surrupiado do alto da estante de livros de seu avô. Tratava-se de um livro sobre a Cabala, que significa literalmente "tradição", a tradição das coisas divinas, a suma judaica. O instinto de Edla, sentindo que se encontrava diante de algo estranho e perturbador, fez seu coração martelar. Já ouvira falar alguma coisa a respeito, na sinagoga por certo, sobre o misticismo judaico e que a Cabala, durante séculos, fora vital para a compreensão que os judeus tinham de si próprios (de algum modo, quando o mundo lhes voltava a sua pior face). Os cabalistas, ao longo dos tempos, haviam tentado penetrar e mesmo descrever o mistério do mundo como um reflexo dos mistérios da vida divina.
Com os olhos inquietos de Edla, também eu lia aquilo: mentes e corações fervilhando e martelando, em idêntico compasso.
A palavra de Deus, líamos, é impregnada de significado infinito e abre caminho para uma infinita interioridade onde sempre novas camadas de significado são descobertas.
– Veja isso aqui – exclamou Edla – cada letra e palavra da Torah tem uma significação e força ocultas... Assim, as palavras de Deus a Abraão, Lech lecha, são tomadas não apenas no seu sentido literal, "Vai-te", ou seja, não são interpretadas como se referindo unicamente à ordem de Deus a Abraão, para ele ir pelo mundo afora, mas são lidas com literalidade mística significando "Vai-te a ti mesmo", isto é, "Encontra-te a ti próprio".
Aquilo atraía e fascinava os espíritos: o de Edla e o meu. A palavra, a força das palavras. Seu imenso poder de criação. Ai! Pensei nas minhas próprias, tão arredias ultimamente, escondendo-se no escuro, buscando esconderijos, desencontradas de mim. E vi Edla, como enlevada numa espécie de sonho, fixando-se naquele Lech lecha, mas com os olhos voltados para dentro de si mesma.
O texto absorvia...
– Tom... Existem aqui neste livro histórias interessantes... Sabe o que é um golem?
Tom sabia, ouvimos atentamente a sua explicação: o golem é a figura de um homem de barro ou lodo, que deve tomar vida ao ser pronunciado sobre ele o miraculoso Schemhamphoras – o nome de Deus. Sobre sua fronte está escrita a palavra emet, que significa verdade. Adão, tirado da terra, fora criado com golem, a quem o alento de Deus conferiu vida ou fala. Assim, alertou Tom, alguém que se dispõe a criar um golem, está competindo, de alguma maneira, com a criação de Adão por Deus...

Perigoso, proibido, arriscado...
Sim! Tudo isso. O que bastou para que Edla e eu aventurássemos em criar um golem...
Ousar para merecer.
O perspicaz leitor, que sabemos iniciado na crença mágica fundamental da força das palavras, facilmente poderá tomar a credibilidade nas mãos e, com olhos, ver Edla e Thom seguindo os ensinamentos do livro, tomando um pouco de terra virginal de montanha e a amassando com água corrente. Ah! O cheiro de terra, embalsamando o ar. O cheiro do Éden, o frescor das primícias... Trabalhamos com afinco e seriedade. Quase não discordamos sobre a figura a ser criada com o barro, Edla queria companhia (além do Tom) e, mãos à massa, esculpimos, com delicadeza e esmero, a figura de uma boneca desajeitada, na qual Edla, como a tia Nastácia, colocou as sobrancelhas muito acima dos olhos – a Marquesa de Rabicó.
Olhamos a boneca de barro, parecia uma bruxinha. Sorrimos.

– Pronto – disse Edla para Tom. – Agora é com você, seu doutor Cara-de-Coruja, trate de dar vida a essa Emília. E ministre-lhe também uma pílula falante, tenho muito a conversar com a pestinha...
A boneca de barro foi assim trancada dentro do guarda-roupa, junto com o Tom. Aquela seria uma longa noite...

IV

Eu dormitava entre sonhos sonhados com palavras, palavras antes perdidas em abismos sombrosos, em profundezas vazias, palavras que ecoavam roucas da escuridão do interior do guarda-roupa, palavras, como disse Proust, desancoradas a uma grande profundidade, palavras distantes que se aproximavam plenas de magia, erguendo-se numa roda, combinando-se, tangendo-se no silêncio da noite, girando, entrando em comunhão com o universo, redemoinhando estrelas, carregando-se de sagrado, do infinito cósmico, sopradas com toda a energia vivificante do universo em direção à vontade suprema de criar alguma coisa que ainda não existe... Criar...
Criar! Como se a vida emudecesse ao meu redor, deste silêncio veio o meu despertar. Depois de uma tempestuosa noite de ruídos, o dia amanheceu calmo e luminoso. Levantei-me num salto, fui imediatamente até o guarda-roupa, abri a porta, espiei. Nada. Tudo no lugar de sempre, as roupas, a sapateira, o espelho da porta... O espelho da porta! O golem? (Que merda de escritor sou eu, que não posso ser uma menina judia?) Não? O golem encontrava-se no espelho... Eu conseguira! Conseguira! Porque, a minha imagem – e lá estava ela bem nítida – era a de uma menina judia, Edla, um pouco mais velha, em verdade, a imagem de uma mulher, da Noel, a guerreira, autêntica – a mulher com a fronte assinalada.
Vai-te a ti mesmo... Encontra-te a ti próprio...
Aproximei-me do espelho: com letras de barro, pude ver o selo sagrado da Verdade – Emet – impresso sobre a minha testa.

Sérgio Mudado (Thomas), em agosto de 2000/novembro 2010

sábado, 27 de novembro de 2010

Vila dos Confins

Criação literária. Vamos mais adiante. Após ter devorado (e praticamente destruído) a coleção infantil de Monteiro Lobato, descobri o Tesouro da Juventude, e neste, principalmente, o Livro dos Contos e o Livro das Belas Ações.
O passar do tempo, trouxe hormônios e adolescência.
A juventude, já foi dito, comunica ao ato de ler um sabor e uma importância particulares. Coisas continuam a valer mesmo que nos recordemos pouco ou nada do livro da juventude. Já no ginásio, aos quatorze anos, um professor, que, ingratamente, não lembro o nome, obrigou-nos a ler os primeiros romances, dentre os quais um livro chamado Vila dos Confins, de Mário Palmério. Posteriormente, vim saber, com espanto, que o mundo não considerava esse autor uma estrela de primeira grandeza da Literatura Brasileira. Entretanto, devorei o livro ao longo de uma madrugada de excitações, e a descrição da caçada de uma onça negra, pelo destemido Padre Sommer, armado apenas com uma zagaia, dentro de uma caverna tenebrosa, produziu-me, numa só palavra: febre! Naquela noite, pela primeira vez, de forma sólida, pensei no autor de uma obra como alguém muito especial. Para que escrevia? Não fazia idéia. Mário Palmério, porém, por Vila dos Confins, tornou-se o maior escritor do mundo no início de minha adolescência.

Alain Conny

Este blog tem tido a honra de receber a visita do escritor francês Alain Conny, radicado no Brasil desde 2003. Romancista publicado em sua terra natal - Alain é parisiense ( Paris: paradisus mundi, mundi rosa, balsamum orbis ou, traduzindo, Paris: o paraíso na Terra, a rosa do mundo, o bálsamo do universo, com o que o romancista, no último post em seu blog, não parece concordar, considerando os dias de hoje). Confiram o autor francês. A trajetória de Alain, com certeza, não passará desapercebida.
http://alainconny.blogspot.com/
Sérgio

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Aperitivo para Os negócios extraordinários de um certo Juca Peralta

Estou lendo Os negócios extraordinários de um certo Juca Peralta, de Sérgio Mudado, publicado pela Editora Crisálida. Leio lentamente. Quero toda a beleza do texto, a complexidade da trama e do tempo desta narrativa que me surpreende cada vez que a retomo.

Digo retomo porque (morram de inveja!) eu a vi nascendo. Por um desses mistérios do acaso, Sérgio Mudado e eu nos tornamos amigos via internet, desde que ele publicou Vassallu. Sérgio veio lançá-lo em São Paulo e algumas amigas livreiras me convidaram. Eu fui, comprei, pedi autógrafo e devorei o livro. Em seguida mandei um e-mail para ele – que me deu seu endereço – com um comentário sobre o livro. Dali em diante nos correspondemos sempre e, quando estava começando a escrever “Juca Peralta”, mandou-me alguns capítulos. Foi, uma vez mais, um susto, mas um susto muito maior do que o do Vassallu. Não porque se possa comparar um ao outro, mas porque a literatura de Sergio Mudado tinha se tornado mais audaciosa, tanto no tema quanto em seu tratamento. Uma história que poderia ser banal, era, nas mãos e na mente de Mudado, uma imensa aventura. E não estava distante no tempo (as Cruzada) ou no espaço (o Oriente Médio), como em Vassallu. Estava agora bem próxima, ali mesmo na curva da história do Brasil onde o trem apita, por assim dizer. Era contemporânea e, se não era conhecida, é culpa da imensa ignorância que teimamos em manter sobre nossa própria história.

A estrutura narrativa da obra era surpreendente e o tempo deixara de ser linear. A história ia e vinha no tempo enlouquecido da narrativa e comentários de seus personagens. Sergio Mudado ia tecendo, capítulo a capítulo, um tapete de fatos e vivências dos personagens. O tecido era feito da magia e do sonho que está no ato mesmo de criar. Enquanto construía esse tecido colorido e complexo, eu o acompanhava à distância. Quando o releio agora, já plasmado em livro, com uma capa linda e uma edição cuidada, levo novos sustos. Já não é o mesmo texto; a historia está mais rica; as paisagens, mais vivas; os personagens revelam novos traços e nuances. Como foi que eu não vi antes? Isto é parte da magia de Os negócios extraordinários de um certo Juca Peralta.

Logo trago uma resenha – que jamais fará justiça à obra – apenas para que possamos pensar juntos. Antes disso, vão lendo, vão lendo...

Edith Piza – SP 23/11/2010