terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Assim nasce o erotismo


Escuta. Podes sondar a noite que nos envolve. Podes investir contra essa noite... Não sairás dela! Adão e Eva, quão atroz deve ter sido vosso primeiro beijo, para que nos gerásseis desesperados!” (Khayyám)

Conta a lenda que o pequenino Eros, encantador menino alado (e um bocado travesso), certo dia, no Olimpo, com expressão inocente, abordou o poderoso Zeus (que detestava ser tratado por a ‘vovô’), indagando: “Não compreendo, vovô! Concedeste aos humanos os olhos e permitiste que a beleza de tuas criaturas os ofuscassem. Deste-lhes a faculdade de ser felizes, e queres que renunciem gozar os bens deste mundo. Mas isso é absurdo! Falta alguma coisa. Criaste um jardim, um homem viril, uma mulher ondulosa e, ainda assim, aquilo parece vazio como uma taça derramada de néctar.”
Zeus admirou-se.
“O que achas que falta nesse jardim, meu encantador netinho?”
“O Desejo, vovô, o Desejo...”
O deus supremo, após um minuto de divina meditação, percebendo a argúcia da criança, não titubeou: “Se é assim, sei que poderás cuidar desse problema, meu pequeno Eros. Ponha essas tuas asinhas na imaginação e dá aos homens algo ainda além do próprio Desejo... Vá! Pousa neles o teu olhar, o querer demais... Desperta-lhes o regozijo, os gestos sonhadores, a fantasia... Anda! Parte. Tens agora importante missão a cumprir. Lembra-te, no entanto: não desconheço que és um menino caprichoso e tuas coisas nem sempre dão muito certo. Assim, ficarei de olho nas tuas traquinagens...”
E lá se foi o pequeno Eros, a mando do grande deus, e em sua cabecinha trêfega, mais e mais palavras flutuavam, tentando organizar-se: ‘Mistério’... ‘Engano’... ‘Feitiço’... ‘A presa deliciosa’... ‘Os artifícios’... ‘A ferida’...
Netinho danado, aquele menino. Mesclava, em sua natureza divina, o amor de sua mãe Afrodite, e a belicosidade de seu pai, Ares - o mais odioso dos deuses olímpicos, conhecido como o Senhor da Discórdia e da Guerra.
Havia, porém, um quê de singular na idealização do anjinho: Eros sabia que teria que inventar uma perfeição, pois tão-somente uma perfeição seria capaz de não deixar os homens permanecerem irreais, ocos, vazios, monótonos e assim, frívolos, a ponto de serem rejeitados pelo próprio Criador.
‘Devo’, imaginou Eros, ‘introduzir no jogo da vida dos humanos, em suas relações mútuas, um laço fadado a assumir um caráter de ardente intensidade... De tal modo, porém, misterioso que não haverá esperança nem probabilidade de sequer o próprio Zeus atingir e compreender a sua essência... (Agora devaneava solto, além da rebentação). Farei, num certo dia inimaginável, que a natureza humana recenda a folhas de mirto, fazendo com que os olhos dos homens brilhem o próprio sorriso da alma, e o vermelho de seus lábios torne-se ainda mais atraente que o carmim. E aformosearei os seus movimentos, imprimindo-lhes ao corpo a marca de uma promessa de delícias...’
Sorriu com os próprios pensamentos. E concluiu o devaneio: ‘Apenas é real a vida da alma e dos sentidos... ’
Pois aconteceu que, neste instante reflexivo, debaixo de sua cabeleira encaracolada, a nuca pinicou-lhe intensamente. Ao levar a mão atrás, para coçá-la, sem querer, Eros feriu-se na ponta de uma das setas de seu bem fornido carcás. Aturdido, observou o sangue rutilante brotar em seu dedo. Levou o ferimento à boca, sugou-o. Neste exato momento, sentindo o estranho sabor de sua própria carne, descobriu finalmente o que almejava, por completo: criaria, da necessidade extrema da alma e da carne, uma poção, uma espécie de veneno com o qual embeberia as pontas de suas setas. Um lampejo genial indicou-lhe que tal veneno seria constituído, não por substâncias químicas, para as quais, cedo ou tarde, se obtém um antídoto, mas por uma espécie de... De que?... De música, sim, isso mesmo... Música cujos acordes, abafados, de puro devaneio e desejo, erguer-se-iam dos campos mais primitivos e selvagens do ente flechado, levando-o a bailar uma dança hesitante, num bastidor profundo de seu ser, naquele espaço limítrofe entre a luz e a sombra, a bem-aventurança e a ruína, o resvaladiço e o permeável, o delicioso e o terrífico... E haveria alguma coisa nesta música que não se deixaria captar, fios inaudíveis que escapariam, sempre, prolongando-se além dos sentidos, estendendo-se infinitamente aos mais obscuros campos da imaginação humana.
Pronto. Estava criada a perfeição - o erotismo.
Sérgio Mudado

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