quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

UMA AVENTURA ENCANTADA



Parte I

Por mais incrível que isto pareça, desta vez foi o silêncio que o despertou.Isso mesmo! Ludi, ainda de olhos fechados, levantou primeiro uma orelha, depois a outra e pôde ouvir muito bem, com sua audição magnífica, um silêncio de doer os ouvidos. Assustado, arregalou os olhos, pulou fora da pequena cama redonda, sacudiu a pelugem curta – branca com manchas marrons – e pôs-se a farejar o ar. Que coisa mais estranha! Teria perdido os seus maiores tesouros, a audição e o faro? Começou a latir, sem motivo, por pura aflição.
– Ei, amiguinho! Acalme-se! Você também percebeu, não é mesmo?
Assustado, Ludi voltou-se em direção à voz, que saía de dentro da gaiola, do bico do azulão.
– Mas então você pode falar? – perguntou ao passarinho, com as orelhas esticadas ao máximo, devido à surpresa.
– Ora, isso não me espanta – respondeu o azulão. – Falo tão bem quanto você... O problema é outro: não consigo cantar! Aconteceu alguma coisa...
– Que novidade é essa? Como não consegue cantar? – indagou Ludi, confuso – Eu sempre acordo com o seu trinado. Passarinhos cantam, cachorros latem... E estamos aqui conversando como dois seres humanos... Devo estar sonhando... Afinal, quem é você, azulão? O que está acontecendo? O que...
– Ei, ei, cachorrinho! Devagar! Uma pergunta de cada vez... Quer saber quem eu sou, eu lhe digo: sou o espírito do ar, meu nome é Ariel. Agora, quanto ao que está acontecendo, ainda não sei. Ao acordar, tentei, como faço todo dia, soltar um belo trinado. Estiquei o gogó, abri o bico e nada! Um vexame, um passarinho não poder cantar. Já imaginou você sem o seu faro, Ludi?
O cãozinho, num gesto, acariciou a ponta fria do focinho, cheirando a própria pata.
– Nem brinque com uma coisa dessas. Nós cães não temos boa visão. Ai de nós não fosse o excelente faro e, principalmente, os ouvidos aguçados... Mas, o que acha que aconteceu? Não consegue cantar mais? Eu poderia ajudar você, de algum modo?
Ariel colocou a cabecinha para fora, entre os ferros da gaiola.
– Pode. E deve. Abra a portinhola – disse docemente – Deixe-me sair daqui. Tenho que voar pelo mundo, investigar e descobrir o que aconteceu... Vamos, Ludi. Seja camarada, meu amiguinho...
Ludi balançou a cabeça de um lado para o outro. Seu dono adorava aquele passarinho e, certamente não iria querer ver o seu azulão por aí, solto, cortando o céu azul com o seu vôo, cantando sobre as árvores, brincando com os outros passarinhos...
Ariel parecia ler pensamentos:
– Ouça, Ludi! Se os homens, verdadeiramente, amassem os pássaros, não existiriam as gaiolas. Vamos, amigo! Abra a portinhola. Eu preciso sair para saber o que aconteceu, descobrir porquê não posso mais cantar...
Decidiu-se. Com a pata, num gesto preciso, Ludi ergueu a portinha da gaiola, por onde era colocado o alpiste. Nem acreditou que tinha feito aquilo. Seu coraçãozinho martelava no peito, instigado por uma mistura de emoção e de alegria.
Ariel, livre, sobrevoou o quarto e, encantado com tamanha felicidade, preparou–se para emitir o seu mais belo trinado, como forma de agradecimento. Fez a pose e o esforço: nada. Nadinha. Nem um ínfimo solfejo brotou-se-lhe do bico aberto.
– Tenho que partir, Ludi – disse, pesaroso. – Prometo, porém, que tão logo descubra a causa do problema, voltarei para lhe contar. Adeus, amiguinho. Espere por mim...
E voou pela janela, rasgando o céu que amanhecia.

***
Deitado sobre as patas traseiras, com as dianteiras espichadas adiante, Ludi permaneceu atento, cabeça erguida, os olhos cravados na janela, à espera do retorno do pássaro. Teve uma estranha sensação de que muito tempo tinha passado, mas o céu, lá fora, recusava-se a amanhecer completamente. Poderia o tempo parar? E aquele silêncio surdo, que invadia os ouvidos e se estalava interiormente, como uma dor fincando o coração? O mundo não parecia, de modo algum, real. Coisa muito grave, por certo, havia ocorrido...
Assim pensava, quando seus ouvidos apurados de cão detectaram um rumor de asas. Ariel pousava no parapeito da janela. Parecia aflito. Imediatamente de pé, Ludi pôs–se a latir, abanando velozmente o seu cotó de rabo. O passarinho, com a voz engasgada, exclamou assustado:
– Roubaram a Música do mundo!


***
– Roubaram a Música do mundo? – repetiu Ludi, franzindo o focinho de espanto.
– Sim, Ludi! Toda a música existente no mundo! Aqui, lá e acolá, em parte alguma não se ouve sequer uma simples nota musical – disse Ariel, desconsolado.
– E isso é assim tão grave? – indagou Ludi.
– Tão grave? Tão grave? É muito pior do que isso! – repetiu Ariel, indignado. – A música é essencial! Sem ela, não existirá a mínima possibilidade de sobrevivência neste planeta. Refiro-me aos humanos. Logo haverá, entre os homens, mais intolerância e guerra... Ah, querido Ludi! Somente o encantamento da Música – e tão-somente ela – consegue suavizar, de modo universal, o espírito humano. Se mesmo contando com esta suprema beleza, os seres humanos já são as biscas que são, sem ela, embrutecidos pelo vazio da Música, farão guerra, guerra, guerra, até a destruição total do mundo.
– Mas quem poderia ter cometido crime tão terrível assim, este de roubar a Música do mundo? – ganiu Ludi, baixinho, sentindo lágrimas brotando-lhe nos olhos.
– O Gênio do Mal, Calibã. Somente Calibã poderia cometer tão grande e cruel crime. Foi o que apurei nas ruas, nas florestas, nos campos e nas águas do mundo – disse Ariel, também sentindo uma gotinha de lágrima rolar-lhe peito abaixo, deslizando sobre as penas azuis.
– E nada pode ser feito? – perguntou Ludi, que, como todo cão, tinha em si um instinto policial.
Ariel saltitou, pulando e pousando sobre vários objetos do quarto. Só evitava a proximidade da gaiola. O espírito do ar pensava...
– Durante o meu voo de volta – disse, enfim – observei algo curioso, quando sobrevoava uma loja de instrumentos musicais. Um pequeno relâmpago brilhou no interior da casa como se tivesse piscado para chamar a minha atenção. Desci, cheguei até a vidraça da janela fechada e, por um instante, um lampejo iluminou o interior do ambiente... O brilho, porém, não se repetiu – mas sou capaz de jurar que alguma coisa ali dentro queria me ver... Ou, quem sabe, nos ver, Ludi! Vamos, venha comigo! Vamos até aquela loja... Se você me ajudar, poderemos entrar e, quem sabe, esclarecer o mistério. Sinto, em todas as minhas penas que ali acharemos alguma pista... Vamos, amiguinho, vamos logo, antes que seja tarde demais...
O faro policial de Ludi encontrava–se agudíssimo naquele momento. Sentia, nos pêlos, que Ariel tinha razão – e estava disposto a ajudá–lo. Apenas uma pequena dúvida, uma pontinha de medo que o assaltava, obrigou–o a arriscar uma última pergunta, antes de decidir sair para a rua:
– E esse Gênio do Mal, Ariel? Como é mesmo o seu nome? Você sabe como ele é? Qual a sua aparência?
Ariel estremeceu.
– Calibã! Dizem – piou baixinho – que ele se parece sempre com o nosso maior medo. Se isso for verdade, para mim, um pássaro, ele certamente se parecerá com um enorme e monstruoso gato...
(continua...)

2 comentários:

  1. Red Cat, a gata pentelha, torceu o focinho. "Minha história é mais interessante! E desde quando gato é monstruoso? Arghhhh, esse escritor não deve ter gato", ela me disse. Como a Red é uma inxirida de marca, ignorei o comentário. Aguardamos o próximo capítulo.

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  2. Como dizia Alice, areia da grossa areida fina...
    Diz o kaptain:
    -Calibã, meu Calibã traga só para mim
    esse seu talismã! Para entrar no mundo mágico dos contos do Sérgio Mudado.

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