sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Uma aventura encantada

Parte IV (Final)

A nave-tuba mergulhou nas profundezas do universo. Passaram por muitas estrelas de tamanho e brilho variados; por nebulosas brilhantes e constelações imensas. Assim conheceram a espada de Órion, o olho vermelho do Touro, a Cabeça de Cavalo, as patas do Caranguejo... Saíram da Via–Láctea, atravessaram galáxias inteiras... Aquilo não tinha fim.
Então, chegaram ao vazio...
– Estamos no fim do universo, se é que o universo tem um fim! – disse Ariel. – Percebem o vazio de coisas? O Buraco Negro, invisível, encontra–se próximo, aspirando, sorvendo tudo!
Pura verdade. Os instrumentos da nave-tuba indicavam a existência de uma força de poder infinito, absorvendo, tragando tudo para si, inclusive a nave onde se encontravam os amiguinhos.
– Segurem–se – gritou Ariel estonteado pela turbulência – Estamos sendo sugados pelo Buraco Negro. Segurem-se!
Era uma ordem impossível de ser cumprida. A Nave-Tuba, colhida por um redemoinho, rodopiou feito um pião, num turbilhão imenso, submergindo profundamente naquilo do qual nada pode sair, nem mesmo a luz: o Buraco Negro.


***

Então tudo se quietou.
Do lado de fora da nave, os heróis avistaram uma paisagem tenebrosa. Rochas nuas e negras, expelindo línguas de fogo, pareciam os únicos habitantes daquele deserto medonho...
– Aqui é o Inferno! – ganiu Ludi.
– A moradia do Calibã – gemeu Ariel. – Estamos perdidos e completamente abandonados. Jamais conseguiremos sair deste lugar maligno.
– Um momento, amiguinhos! – disse Puck, que não perdia o bom humor por nada. – Estou me lembrando das palavras do meu Mestre: a Música, sim, foi o que ele disse, a Música percorre um caminho misterioso e mágico... Agora posso compreender... Percebem? A Música é o sopro de coisa muito maior e mais poderosa que qualquer força existente... Estou dizendo que a Música nasceu do sopro do próprio Criador Supremo. Ah! Temos que encontrar a nossa Fada. Ela poderá nos tirar deste abismo. E sei como encontrá-la!...Vamos, Ludi. Sopre o meu bocal, crie um acorde maravilhoso, ele nos guiará até a Fada-Mãe.
Assim foi feito: o acorde, mavioso, brotou do flautim, ganhou os ares e, flutuando suavemente, seguiu caminho, acompanhado de perto pela nave. Passaram por paragens tenebrosas. As rochas negras tornavam-se mais imponentes e havia no chão, a cada passo, fendas abismais, de onde saíam labaredas ameaçadoras. Neste instante, um rugido pavoroso rasgou os ares e os amiguinhos, assustados, puderam avistar aquilo: ele, em carne, osso e pura maldade: Calibã.
O monstro medonho, com fuças de um enorme felino, apenas um olho coruscante no meio da testa, pêlos eriçados e disformes, garras imensas e presas descomunais, guardava a entrada de uma caverna escura.
– Um gato, eu sabia que seria algum tipo de gato – sussurrou Ariel, trêmulo. – Estamos perdidos, jamais passaremos por ele.
Ludi também sentiu medo. No entanto, seu instinto de cão, parecia se fortalecer a cada instante. Cães não nascem para temer gatos, nem mesmo aqueles que deixaram de ser gatos e se transformaram em monstros com um olho só. Era isto que se passava na cabecinha de Ludi, que, sem mais delongas partiu para o ataque contra Calibã, latindo com todas as suas forças. Ao notar a presença do cachorrinho, o Gênio do Mal rugiu uma espécie de miado, fazendo com que o seu hálito pestilento doessem as narinas de Ludi. O cachorrinho não se intimidou. Gato é gato, e cachorro é cachorro! Assim pensou. E atacou. Parecia mesmo feroz.
A luta foi encarniçada. Ludi avançava e recuava, incansável, pulando e latindo sem parar. Calibã, rugindo, desferia patadas violentas, das quais o cachorrinho, aos saltos incríveis, se esquivava como que por milagre.
– Ele descobriu o gênio que tinha dentro de si, o Gênio da Coragem! Eu não havia dito que ele tinha também um gênio? – exclamou Ariel.
– Ah, o Bem, por ser Bem, precisa ter mais coragem que o Mal, que é covarde. Mas Ludi é pequenino demais e poderá ser morto – disse Puck.. – A não ser que possamos fazer alguma coisa... Do-ré-mi! Tive uma idéia! Aposto que o ponto fraco do monstro é aquele olho vermelho, não estou certo? Pois vou entrar nesta briga, ah, se vou!
Neste momento, Calibã levava a melhor. Uma patada certeira atingiu Ludi, lançando-o longe. Bateu numa rocha, quase desmaiando. Uma garra de Calibã havia riscado fundo o pêlo de seu peito, produzindo um corte. O sangue brotou, manchando de vermelho a pelagem branca em torno da ferida. Puck aproximou–se do amigo.
– Ei, cãozinho valente, você está bem?
– Um pouco tonto... Esse é o gato mais bravo que já enfrentei – disse Ludi, falando uma mentirinha, porque, na verdade, nunca tinha enfrentado gato algum em toda sua vida. (E sequer, admita-se em segredo, tinha raiva de gatos).
– Escute, Ludi! Tive uma idéia. – disse Puck, apressado, pois Calibã avançava, pretendendo terminar o serviço que havia começado. – Temos que acertar o olho do bicho, é a nossa única chance...
– E como faremos isto? – gemeu Ludi – Ora, Puck, agora não é hora para brincadeiras! Não vê que estou sangrando?
Calibã se aproximava, disposto a desferir o golpe fatal. O olho vermelho coruscava e a bocarra medonha arreganhava dentes que pareciam de aço...
– Coloque-me em sua boca, Ludi. Mire o olho da fera e sopre com toda a força que tiver. Depressa, o bicho está bem perto!
Ludi colocou o flautim na boca. A fera avançava, o olho faiscando, a bocarra rosnando ódio e mau cheiro, a pata erguida, as garras esticadas para o golpe final.
– Agora – disse Puck.– Mire no olho...Sopre!
O acorde, agudíssimo, saiu pontudo e veloz com uma flecha, cravando-se bem no centro do olho vermelho de Calibã. O gatão urrou de dor e de desespero. Tentou, com as patas dianteiras, tirar o dardo que lhe cegava o olho. Em vão. Enfurecido, começou a dar patadas a esmo, caminhando de maneira trôpega e desnorteada. Sua cegueira, dor e ódio não o deixaram ver uma das muitas fendas que rasgava o chão, um buraco de profundeza abismal, de onde saíam terríveis labaredas. Pois Calibã caiu ali dentro, numa queda vertiginosa – e bem funda a se julgar pelo longo e cada vez mais distante miado que se pode ouvir...

***


Os amigos pararam na entrada da caverna escura. Estavam todos muito emocionados. Estaria a Fada-Música aprisionada lá dentro? O coraçãozinho de Ludi martelava dentro do peito, do qual escorria um filete de sangue. Entraram, cuidadosamente, a nave-tuba iluminando o caminho. Foi quando a avistaram...
Ela estava ali, sentada numa cadeira de pedra, com as pernas e os braços agrilhoados por correntes pesadas. Ludi se espantou. Uma indescritível emoção encheu–lhe os olhos de lágrimas... Tratava-se de uma menininha. De uma linda menininha que parecia dormir. Estaria morta?
Ariel voou, desnorteado, sem saber o que fazer. Puck, porém, sempre buliçoso, parecia eufórico.
– É a primeira vez que eu a vejo. Oh, Ludi, como ela é bonita! Venha aqui, amiguinho. Quero que você me sopre, com a maior ternura possível... Vamos, meu querido amigo, sopre-me.
Ludi obedeceu, soprando, delicadamente, o flautim. Os acordes alçaram o ar, bailando em direção à Fada. Então aconteceu aquilo: como que encantados, as notas harmônicas, como pequenas faíscas luminosas, envolveram a menina, ondeando sua cabeleira, rodeando o seu corpo, brincando e dançando como fios ondulantes de luz e de cor. Os grilhões, um a um, romperam-se. A menina, tornada um ser luminoso, despertou. Imediatamente, sons de extrema beleza inundaram o ambiente. Ludi jamais tinha ouvido ou sentido música de tamanha doçura e beleza. Ah, o mestre Oberon tinha razão: a música não atinge apenas os ouvidos, mas o próprio espírito dos seres vivos. E a Música, mágica, crescia, erguia-se de sua prisão. Seu dedinho, carinhoso, tocou a estrela branca na testa de Ludi (que imediatamente iluminou-se), e, em seguida, sobre a ferida no peito, que, no mesmo instante, parou de sangrar e de doer... Depois, afagou a cabecinha de Ariel, deixando que o passarinho lhe beijasse o rosto. Sorriu ao pegar Puck em suas mãos, levando–o aos lábios, fazendo com que o flautim tocasse a música mais bela que já se possa ter escutado. E, tocando, pôs-se a dançar, a dançar, envolta por notas e acordes brilhantes, criando um turbilhão de sons e de luz, de uma beleza estonteante, envolvendo a tudo e a todos, transportando-os por um caminho maravilhoso... A cabecinha de Ludi rodopiava, perdia-se, embriagada, no meio de tanta beleza e prazer...
Rodopiava, rodopiava, rodopiava...



Epílogo


Ludi abriu um olho, depois o outro. Um primeiro raio do Sol da manhã aquecia-lhe o focinho, sempre tão frio e úmido. Despertou. Encontrava–se em seu quarto. Em sua caminha redonda.
Então havia sonhado? Ariel, Puck, Oberon, a Fada-Música... Tudo não havia passado de um sonho maluco e maravilhoso? Olhou em direção à gaiola, lá estava o azulão, ciscando o alpiste.
Sem cantar.
“Ariel”! – quis falar Ludi, mas a única coisa que conseguiu foi emitir um latido esganiçado.
Então tudo não passara de um sonho! Que pena, havia sido tão bonito, tão real! Que pena! Sentiu-se desconsolado.
Neste momento, sentiu uma leve dor, bem no meio do peito. Abaixou a cabeça, e, espantado, viu a cicatriz da ferida provocada na luta contra Calibã e curada pela Fada-Música.
Então, tudo fora real!
Ludi voltou o seu olhar rapidamente para a gaiola. O azulão, cabeça entre os ferros, observava-o, mudo.
Ludi sabia o que tinha de ser feito: foi até a gaiola, ergueu a portinhola, libertando o passarinho.
O azulão ganhou os ares do quarto, num vôo curto e belo. Em seguida, aproximou-se de Ludi, deu-lhe uma bicadinha no focinho, como um beijo, e voou até o parapeito da janela. Voltou-se então para o cachorrinho, esticou o gogó e soltou o mais lindo trinado de toda a sua vida, a mesma música tocada pela Fada-Música no flautim, após ter sido libertada.
Assim feito, voou para o céu azul e ensolarado da manhã que nascia deixando para Ludi – que tinha os olhos embaçados de lágrimas – a delicada música suspensa no ar.


FIM

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