quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Uma aventura encantada

Parte II

A porta da frente da loja de instrumentos musicais estava bem trancada, foi inútil o esforço que Ludi realizou com suas patinhas dianteiras na tentativa de abri-la. Como tomado por um pressentimento, o cachorrinho, num impulso, correu para a lateral do prédio. Acertou. Havia ali uma pequena janela de vidro, quase rente ao chão que, não resistindo à força de suas patas, deixou–se abrir. Os amiguinhos, cautelosos, penetraram no recinto. Estava escuro lá dentro. Ariel, com o bico, ligou o comutador, acendendo a luz. O que viram? Achava–se ali desdobrado, além do piano, tudo quanto canta e ressoa, zune, estronda, sussurra, matraqueia e ruge. De um lado, os instrumentos de corda: graciosos violinos de verniz marrom com seus arcos delgados, a violeta, o violoncelo canoro, a viola de gambá, a viola d'amore, o gigantesco contrabaixo, a harpa... Acolá, os instrumentos de sopro: a flauta travessa, o fagote, com sua boquilha curva e suas chaves e alavancas brilhantes, o pastoril oboé, o corne-inglês, a pesada tuba, o garboso trompete... Do outro lado os instrumentos de percussão: os timbales, o bombo, a pandeireta...
Ludi e Ariel contemplavam, assim, uma grande e silenciosa orquestra. O passarinho, resoluto, dirigiu-se aos instrumentos, indagando:
– Quem, dentre vocês, me chamou, hem? Quem foi que, um pouco mais cedo, me lançou aquela piscadela luminosa? Vamos, coragem! Estamos aqui para ajudar. Tenho certeza de que ninguém deste mundo sabe e sente mais pelo desaparecimento da Música, do que vocês, não é verdade? Afinal, não posso, agora, imaginar alguma utilidade para os instrumentos musicais...
Enquanto Ariel falava, Ludi, amistoso, erguia as patinhas dianteiras, abanando o cotozinho marrom de pontinha branca.
Houve resposta.
Um lampejo iluminou um canto do salão. Ariel voou rápido até o local, descobrindo: fora o bico de prata do flautim que havia refulgido a luz.
– Quem é você? – perguntou–lhe Ariel.
– Meu nome é Puck – respondeu o flautim, cuja voz, muito aguda, fez Ludi ganir. Os ouvidos de um cachorro são hiper sensíveis aos agudos.
– Puck?
– Sim. E já vou avisando: sou um gênio buliçoso e brincalhão. Espero que vocês não me queiram mal.
– Nós não lhe queremos mal, Puck. Mas será que daria para você falar de modo um pouco menos agudo? – pediu Ludi, esfregando as patas nas orelhas.
– Oh! Perdoe–me, tenho uma sonoridade brilhante, minha altura de som fica situada uma oitava mais aguda que a da flauta e dizem os maestros que é a única a conseguir dançar no encantamento do fogo... Não entendo bem o que isso quer dizer, mas acho bem simpático. E vocês? O que pensam disso? – indagou Puck, soltando uma risadinha.
– Ora – exclamou Ariel –Verdadeiramente temos aqui um gênio buliçoso e brincalhão...
– Meus ouvidos que o digam – queixou-se Ludi – Mas vou me acostumar, assim espero...
– No entanto, Puck – disse Ariel – não viemos aqui para brincar. A Música foi raptada, o mundo corre perigo. Presumimos, meu amiguinho Ludi e eu, que aqui encontraríamos alguma pista...
***

– E acertaram em cheio! Bem-vindos à minha orquestra!
– Quem falou? – perguntou Ariel.
– Quem disse isso? – reforçou Ludi.
– Ora, não fiquem preocupados – disse Puck. – Não conhecem o gênio da criação? O piano? Foi ele – Oberon – que me pediu para atraí-los até aqui. Ele quer conversar com vocês.
Dirigiram-se até o piano. O grandioso instrumento então disse:
– Meu nome é Oberon, sou o gênio da criação. Vejo que já sabem do terrível crime cometido. A nossa Fada-Música foi raptada pelo terrível Calibã e assim, o mundo corre grande perigo. Somente vocês poderão libertá-la...
– O senhor, Mestre, saberia onde ela – a Música – se encontra prisioneira? – perguntou Ariel, respeitosamente.
– Infelizmente, não! – respondeu Oberon, com voz grave. – No entanto, tenho uma pista, que vocês deverão seguir. Escutem, amigos. Conheço a Música. Posso assegurar-lhes que ela não se propaga nem pelo tempo ou pelo espaço que os homens conhecem. Seu movimento, misterioso, propaga-se por uma dimensão mágica, e assim sendo, ela não deverá estar escondida neste mundo. Onde estará, então? Não sei. Mas vejam: conheço bem os elementos essenciais à Fada-Música... O que quero dizer com isso? (Perguntava a si mesmo com as teclas brancas e respondia com as negras) Pois, no mínimo, posso presumir que as sete notas musicais – dó-ré-mi-fá-sol-lá-si – foram escondidas em algum canto deste universo e, encontrá-las e reuni-las certamente se constituirá na melhor pista para se descobrir o esconderijo onde Calibã aprisionou a Música...
– Não sei se entendi direito – disse Ariel. – Devemos tentar encontrar as sete notas musicais...
– E introduzi-las no flautim e soprá-lo – adiantou-se Oberon. – Assim, acredito, será revelado o local onde a Música se encontra aprisionada. Pediria que aceitassem a missão e partissem imediatamente. A nave interestelar já se encontra preparada.
– Nave!? – exclamaram Ariel e Ludi, a um só tempo.
Puck apontou para uma tuba pousada no centro do recinto, enorme e reluzente, e, pelo vapor branco expelido junto ao chão, já com os motores secundários ligados, pronta para a decolagem.
– Uma nave mágica, meus amigos, capaz de nos transportar para qualquer ponto do universo – disse com voz agudíssima.

***

– Será que eu realmente devo ir junto? – disse Ludi, cabisbaixo. – Eu não tenho medo, cães da minha raça são destemidos... Mas tenho uma preocupação: vocês são gênios e espíritos, enquanto que eu não passo de um simples cão jack russel... Na verdade, apenas minha mãe é da raça jack russel. Meu pai... Meu pai é um cachorro mestiço, se é que vocês me entendem...
– Um vira-lata – exclamou Puck, num gritinho.
– Não seja rude, Puck! – falou Ariel zangado. E, voltando-se para o cãozinho, disse muito seriamente: – Você também tem um gênio dentro de si, Ludi. Todo mundo tem um. Basta haver uma boa oportunidade para este se revelar.
– Isto é verdade! – assegurou Oberon. – E você Ludi, tem esta linda estrela branca na testa, emoldurada pelo marrom... Tenho a certeza de que, nesta missão, você será de vital importância, meu amigo. Afinal, quem dentre nós poderá farejar e descobrir onde o maldoso Calibã enterrou as notas musicais, senão você?
– Farejar notas musicais? perguntou Ludi, surpreso. – Oh, eu sinto muito. Nunca farejei notas musicais... Mas admito: adoro cavar buracos e conhecer novos cheiros.
– Ótimo! É o que basta! Venha! Suba na banqueta, aproxime seu focinho do meu teclado – ordenou Oberon. – Isso mesmo, meu rapaz! Agora, cheire esta tecla que vou abaixar... Esta mesmo, o . Agora fareje o ... Conseguiu? Bravo, Ludi. Você possui realmente um faro muito especial. Agora fareje o mi...
Assim foi: o piano abaixava uma tecla, dizia o nome da nota e Ludi a farejava. Farejou o sol, o , o si... Memorizou, enfim, o cheiro de cada uma das sete notas musicais...
– Bravo, bravíssimo! – exclamou Puck, que queria se desculpar com Ludi por aquela grosseria anterior. – Talvez seu pai seja mesmo um mestiço, mas de uma bela mistura de cão policial e perdigueiro. Você deve se orgulhar disto. Obteve os melhores dons de várias raças, Ludi...
– E, finalmente – disse Oberon – quero que levem consigo este roteiro de viagem que preparei. Acredito que ele os ajudará a encontrar o destino que buscam... E saibam: não importa o desfecho dessa missão, vocês já são heróis, os mais verdadeiros heróis deste mundo... Partam agora e boa sorte!
Emocionado, o velho piano estendeu para Ariel uma partitura, escrita, é claro, com claves, notas musicais e símbolos que, felizmente, Puck sabia ler muito bem.
Num segundo depois, com os pequenos valentes a bordo, a nave-tuba partia rumo ao espaço infinito.

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