terça-feira, 30 de novembro de 2010

A arte de vender um romance

Tenho comentado aqui, de maneira lúdica, sobre o processo de criação literária. No entanto, prestem atenção vocês que querem publicar! Escrever um romance é trabalhoso. Editá-lo, sem custeamento, é quase impossível. Distribuí-lo, estou me convencendo mais e mais disso, absolutamente impossível. Vendê-lo, então, nas lojas, já que não há distribuição, um milagre do santo das causas impossíveis. Com o surgimento da primeira resenha de Os negócios extraordinários de um certo Juca Peralta, de Edith Piza, recebi alguns e-mails, principalmente de São Paulo, perguntando-me sobre como adquirir o livro, sem ser pela internet. Sinceramente, não tenho resposta. Praticamente todos os dias entro no site da Livraria Cultura e lá, apesar dos milhões de exemplares que a grande livraria dispõe para o público, ainda não há sequer rastro do Juca Peralta. O mesmo se sucede com outras importantes livarias. Aqui em Belo Horizonte, além da Crisálida, o livro se encontra na livraria da Cooperativa Médica. Peço-lhes que não desistam do romance, por essa dificuldade inicial. Esta obra, tenho certeza, irá proporcionar boas horas de entretenimento ao leitor. Assim, esperançoso, deixo, para todos, uma lindíssima mensagem, de redenção, do meu autor preferido, quando lidou com o Diabo em pessoa, no Doutor Fausto. Ouçam, que beleza:"Nada mais acontece. Silêncio e noite. Mas o som ainda suspenso no silêncio, esse som que já não existe, que unicamente a alma prossegue escutando, e que arrematou a aflição, ele muda de sentido e se ergue como uma luz na noite." (Thomas Mann)

domingo, 28 de novembro de 2010

Tons de criar



Para Anette Lomaski (Noel)
Para os criadores do O Caixote
Para Monteiro Lobato

"A verdade é uma mentira bem pregada."
Emília, Marquesa de Rabicó

I

Uma advertência: o leitor – e aqui me refiro ao leitor de O Caixote, tão afeito, de maneira geral, ao processo criativo – esse leitor caixotesco deverá ficar atento aos fatos estranhos e até mesmo espantosos que lerá nos parágrafos seguintes e, portanto, que se cuide, evitando qualquer malefício que disso possa advir.
A história, no entanto, acalme-se, não é, de modo algum, de terror. Quase todos conhecem a Noel, a sumo, uma peste de mulher que freqüenta a salinha 1 de bate-papo e também, em contos, este O Caixote, da gata vermelha & Cia. Pois a Noel, a escritora, em que pese ser uma metralhadora que gira e dispara descomposturas fuzilando, na sala, gregos e troianos, tem uma delicada peculiaridade: gosta das palavras – e gosta pra valer. Com elas brinca como se fossem pedacinhos de massas multicoloridas na mão de uma criança hábil. De seus dedos, as palavras digitadas escapam como crianças em algazarra no recreio, rodopiam brincando de carrossel, libertam-se como passarinhos soltos no azul infinito. Dom reconhecido, não é de se estranhar que Noel, a normal, seja a autora de um romance denso, de trama delicada, que narra a saga de uma personagem chamada Edla, uma menina judia, de inteligência aguda, perspicaz e sensitiva e – o mais lindo – dona de uma fantasia capaz de criar um maravilhoso parceiro imaginário nomeado Tom – com quem divide as encrencas e todas as aflições presentes na infância... Infância de uma criança especial, assinalada na testa com um dom...

Ouça o canto de Edla:
“Nos finais das tardes, Tom se sentava na beirada da janela e nós tínhamos conversas longas e formidáveis (...) Quando, anos mais tarde, descobri que muitas crianças tinham amigos imaginários, foi constrangedor. Não me agradava ter nada em comum com pessoas normais... (...) Eu mentia muito para Tom. Dizia-lhe que tinha um preceptor, e que eu sempre colocava aranhas e outros bichos asquerosos em seu chá...”
Querido leitor, ponha tento nisto: uma primeira confusão já pode estar se principiando e devemos, rapidamente, desfazê-la. Acontece que eu também, na sala 1, tenho o apelido de Thom e se este relato fosse lido em voz alta, quem ouvisse Tom (da Edla) ou Thom (de Thomas), ouviria a mesma coisa, esse agá, aí, importa apenas aos olhos, enxerga-se viril, mas aos ouvidos é inócuo, surdo.
Pois o Tom da Edla, um ser sentido situado fora dela, é puro interior, o tesouro mais recôndito, a própria semente da criação... Ouça a menina falando dele, e o fazendo, por assim dizer, usando palavras delicadas como fios de luz de asas de borboletas adejando - como um poema soprado ao vento da saudade:
“Eu ficava mais calma quando Tom estava por perto. Com ele tagarelava o tempo todo por telepatia. Eu gostava que ele me contasse as prováveis histórias por trás de cada uma das capas de livros que eu via nas livrarias, a caminho da escola. Depois de cada uma dessas conversas, eu atazanava os meus pais até que eles comprassem o livro em questão, e o lia avidamente à procura da história que Tom me contara. Aí, eu contava a Tom a outra versão: aquela do autor.”
(Oh! Bonito com um adágio beethoviano.)
Outra diferença: se o Tom de Edla conta histórias lindas, que nunca leu, o Thom aqui, outrora também um contador de histórias, anda, nos últimos tempos, meio ressabiado com as palavras, que com ele não mais querem se divertir, ou tão-somente querem brincar de esconde-esconde, de buscar a escuridão, de fugir de entrar em sua luz...
Ah, Edla! Criativa, independente, vivendo em um tempo em que tão-só se deve viver em paz e harmonia com um mundo de fantasia, saía do círculo da inocência e, precocemente experimentava o sabor amargo dos pequenos dramas, de peso imenso, como se a vida adulta, com as suas terríveis ameaças e desesperanças, lá do futuro, já rosnasse para ela, forçando, extemporaneamente, a meter-se no presente da menina.

Foi quando brotou, sem quê nem por que, dentro do deserto que anda expandindo-se em mim, a idéia de um conto... Mas, preste atenção: um conto, caro leitor, a ser escrito pela própria Noel, pois a idéia versava sobre a Edla e o seu Tom. Roteiro simples: Edla sofreria alguma crise existencial, uma descrença de Deus, por exemplo. E nesta crise de fé, ouviria, sem querer, algo sobre a Cabala – o misticismo judeu – com o seu sentido mágico, na qual as palavras têm grande poder. Pesquisando a respeito, a menina acabaria por exigir do seu Tom a criação de um golem, uma estátua de barro, a ser vivificada por palavras. E, neste gesto de criação, recriaria a si mesma...
Pelo ICQ contei e passei um resumo desta idéia para a Noel.

NOEL: Ora bolas, você já tem o conto, ele é seu, por que não o escreve, Thom?

(Ai! Por quê? Tenho dito aqui a você, leitor: porque as palavras, que antes vinham à luz tão rapidamente, como bolhas desprendidas do fundo escuro do mar, atingindo a superfície e, sob o sol, tornadas borboletas, voejando coloridas, hoje, semelhantes a morcegos ariscos, fogem para bastidores internos, desaparecendo através de fendas, mergulhando em escuridões inacessíveis à luz, onde não me atrevo a penetrar...)

THOM: Mas Noel, como posso escrever este conto? A idéia é para uma menina, uma menina judia... O conto é seu, escreva-o, dedique-o a mim, se quiser...

NOEL: Você não pode ser uma menina judia, Thom? Que merda de escritor é você, que não pode ser uma menina judia? Escreva-o. Depois quero dar uma olhada no resultado, sinto-me até honrada... Não some não, beijo, estou indo, antes que esta conversa fique ainda mais chata. Fui...

(Que merda de escritor eu sou, que não posso ser uma menina judia, hem?)
II

De Edla:
Eu me sentia enganada. Depois de terem me feito ler todo o Velho testamento e estudá-lo, eu descobri que um tal de Jesus Cristo tinha nascido para nos salvar.
– Vó, o que é o Espírito santo?
Minha vó se encheu de energia para responder uma pergunta tão católica.
– Você não acredita nisso, não é?
– Como eu vou saber? O que é afinal o tal Espírito Santo?
Minha vó veio com uma conversa mole que tentava me convencer que o Espírito Santo era a pomba que saíra da Arca de Noé.
– Mas Noé existiu, não é mesmo?
– Claro.
– Então a pomba também.
– Mas ela não é o Espírito santo.
– Então, quem é o Espírito Santo?
Aquele negócio de pomba-gira não tinha me convencido. Deus até podia ser pai e filho, mas uma pomba, não.
– Vô, o que é o Espírito Santo?
– O espírito santo não existe, é coisa de católico.
– Católico não existe?
Meus avós cansaram-se de responder aos meus questionamentos.
– Pai, católico acredita em Deus?
– Em outro deus.
– Mas Deus não é um só, onisciente, onipresente e onipotente?
– É.
– E por que os católicos não percebem o óbvio?
– Edla, você não andou lendo o novo testamento, andou?
– Eu pensei que era uma releitura mais moderna.
Enfim, ninguém conseguiu me explicar nada. Deram um nó na minha cabeça e eu comecei a achar que esse negócio de deus era, como eu supunha, o maior engodo.
(...) Deus não existia... (...) Não que eu me considere melhor que a idéia de deus, mas eu confiaria mais no taco da Emília – Marquesa de Rabicó.

III

Pronto, pela própria Edla, já tenho uma crise existencial adequada, principalmente para uma menina judia: desconfiar da existência de Deus. (Eu próprio, quando menino, estudei no vetusto Colégio Batista, onde, uma bondosa reitora americana, uma dona Benta de óculos de ouro, que parecia conversar diretamente com Deus – mas, antes de tudo, uma formidável contadora de histórias – ao narrar as passagens bíblicas do Antigo Testamento, conseguiu divorciar-me da figura de Deus, de um deus cruel, vingativo, que eliminava cidades, que lançava pragas pavorosas, que tinha predileção por apenas um povo, dentre mil sobre o planeta, pouco se dando que para isso precisasse arrebentar os filisteus, os egípcios e os brasileiros... Imagino que, para um cristão-de-mentira como eu, deixar de acreditar em Deus não deve ser tão terrível como seria para uma menina judia, que suporta um peso de tradição que remonta ao Éden, de um Deus presente, que aparece aos patriarcas como uma sarça ardente, um Deus que conversa, estipula mandamentos, elege um povo e, por assim dizer, torna-se quase palpável...)
Discreto leitor! Espero que, neste momento da narrativa, você se encontre tranqüilo e bem disposto, pois o assunto a seguir, apropriado para pessoas maduras, é delicado e sigiloso: tivesse eu juízo, manteria silêncio. No entanto...
Não é difícil imaginar por que diabos essa menina – Edla – de rosto semeado de sardas, dada a peripécias imaginárias, dona de uma aguçada curiosidade bisbilhoteira, teve acesso a um velho livro, primeiro farejado, depois espiado e, enfim, surrupiado do alto da estante de livros de seu avô. Tratava-se de um livro sobre a Cabala, que significa literalmente "tradição", a tradição das coisas divinas, a suma judaica. O instinto de Edla, sentindo que se encontrava diante de algo estranho e perturbador, fez seu coração martelar. Já ouvira falar alguma coisa a respeito, na sinagoga por certo, sobre o misticismo judaico e que a Cabala, durante séculos, fora vital para a compreensão que os judeus tinham de si próprios (de algum modo, quando o mundo lhes voltava a sua pior face). Os cabalistas, ao longo dos tempos, haviam tentado penetrar e mesmo descrever o mistério do mundo como um reflexo dos mistérios da vida divina.
Com os olhos inquietos de Edla, também eu lia aquilo: mentes e corações fervilhando e martelando, em idêntico compasso.
A palavra de Deus, líamos, é impregnada de significado infinito e abre caminho para uma infinita interioridade onde sempre novas camadas de significado são descobertas.
– Veja isso aqui – exclamou Edla – cada letra e palavra da Torah tem uma significação e força ocultas... Assim, as palavras de Deus a Abraão, Lech lecha, são tomadas não apenas no seu sentido literal, "Vai-te", ou seja, não são interpretadas como se referindo unicamente à ordem de Deus a Abraão, para ele ir pelo mundo afora, mas são lidas com literalidade mística significando "Vai-te a ti mesmo", isto é, "Encontra-te a ti próprio".
Aquilo atraía e fascinava os espíritos: o de Edla e o meu. A palavra, a força das palavras. Seu imenso poder de criação. Ai! Pensei nas minhas próprias, tão arredias ultimamente, escondendo-se no escuro, buscando esconderijos, desencontradas de mim. E vi Edla, como enlevada numa espécie de sonho, fixando-se naquele Lech lecha, mas com os olhos voltados para dentro de si mesma.
O texto absorvia...
– Tom... Existem aqui neste livro histórias interessantes... Sabe o que é um golem?
Tom sabia, ouvimos atentamente a sua explicação: o golem é a figura de um homem de barro ou lodo, que deve tomar vida ao ser pronunciado sobre ele o miraculoso Schemhamphoras – o nome de Deus. Sobre sua fronte está escrita a palavra emet, que significa verdade. Adão, tirado da terra, fora criado com golem, a quem o alento de Deus conferiu vida ou fala. Assim, alertou Tom, alguém que se dispõe a criar um golem, está competindo, de alguma maneira, com a criação de Adão por Deus...

Perigoso, proibido, arriscado...
Sim! Tudo isso. O que bastou para que Edla e eu aventurássemos em criar um golem...
Ousar para merecer.
O perspicaz leitor, que sabemos iniciado na crença mágica fundamental da força das palavras, facilmente poderá tomar a credibilidade nas mãos e, com olhos, ver Edla e Thom seguindo os ensinamentos do livro, tomando um pouco de terra virginal de montanha e a amassando com água corrente. Ah! O cheiro de terra, embalsamando o ar. O cheiro do Éden, o frescor das primícias... Trabalhamos com afinco e seriedade. Quase não discordamos sobre a figura a ser criada com o barro, Edla queria companhia (além do Tom) e, mãos à massa, esculpimos, com delicadeza e esmero, a figura de uma boneca desajeitada, na qual Edla, como a tia Nastácia, colocou as sobrancelhas muito acima dos olhos – a Marquesa de Rabicó.
Olhamos a boneca de barro, parecia uma bruxinha. Sorrimos.

– Pronto – disse Edla para Tom. – Agora é com você, seu doutor Cara-de-Coruja, trate de dar vida a essa Emília. E ministre-lhe também uma pílula falante, tenho muito a conversar com a pestinha...
A boneca de barro foi assim trancada dentro do guarda-roupa, junto com o Tom. Aquela seria uma longa noite...

IV

Eu dormitava entre sonhos sonhados com palavras, palavras antes perdidas em abismos sombrosos, em profundezas vazias, palavras que ecoavam roucas da escuridão do interior do guarda-roupa, palavras, como disse Proust, desancoradas a uma grande profundidade, palavras distantes que se aproximavam plenas de magia, erguendo-se numa roda, combinando-se, tangendo-se no silêncio da noite, girando, entrando em comunhão com o universo, redemoinhando estrelas, carregando-se de sagrado, do infinito cósmico, sopradas com toda a energia vivificante do universo em direção à vontade suprema de criar alguma coisa que ainda não existe... Criar...
Criar! Como se a vida emudecesse ao meu redor, deste silêncio veio o meu despertar. Depois de uma tempestuosa noite de ruídos, o dia amanheceu calmo e luminoso. Levantei-me num salto, fui imediatamente até o guarda-roupa, abri a porta, espiei. Nada. Tudo no lugar de sempre, as roupas, a sapateira, o espelho da porta... O espelho da porta! O golem? (Que merda de escritor sou eu, que não posso ser uma menina judia?) Não? O golem encontrava-se no espelho... Eu conseguira! Conseguira! Porque, a minha imagem – e lá estava ela bem nítida – era a de uma menina judia, Edla, um pouco mais velha, em verdade, a imagem de uma mulher, da Noel, a guerreira, autêntica – a mulher com a fronte assinalada.
Vai-te a ti mesmo... Encontra-te a ti próprio...
Aproximei-me do espelho: com letras de barro, pude ver o selo sagrado da Verdade – Emet – impresso sobre a minha testa.

Sérgio Mudado (Thomas), em agosto de 2000/novembro 2010

sábado, 27 de novembro de 2010

Vila dos Confins

Criação literária. Vamos mais adiante. Após ter devorado (e praticamente destruído) a coleção infantil de Monteiro Lobato, descobri o Tesouro da Juventude, e neste, principalmente, o Livro dos Contos e o Livro das Belas Ações.
O passar do tempo, trouxe hormônios e adolescência.
A juventude, já foi dito, comunica ao ato de ler um sabor e uma importância particulares. Coisas continuam a valer mesmo que nos recordemos pouco ou nada do livro da juventude. Já no ginásio, aos quatorze anos, um professor, que, ingratamente, não lembro o nome, obrigou-nos a ler os primeiros romances, dentre os quais um livro chamado Vila dos Confins, de Mário Palmério. Posteriormente, vim saber, com espanto, que o mundo não considerava esse autor uma estrela de primeira grandeza da Literatura Brasileira. Entretanto, devorei o livro ao longo de uma madrugada de excitações, e a descrição da caçada de uma onça negra, pelo destemido Padre Sommer, armado apenas com uma zagaia, dentro de uma caverna tenebrosa, produziu-me, numa só palavra: febre! Naquela noite, pela primeira vez, de forma sólida, pensei no autor de uma obra como alguém muito especial. Para que escrevia? Não fazia idéia. Mário Palmério, porém, por Vila dos Confins, tornou-se o maior escritor do mundo no início de minha adolescência.

Alain Conny

Este blog tem tido a honra de receber a visita do escritor francês Alain Conny, radicado no Brasil desde 2003. Romancista publicado em sua terra natal - Alain é parisiense ( Paris: paradisus mundi, mundi rosa, balsamum orbis ou, traduzindo, Paris: o paraíso na Terra, a rosa do mundo, o bálsamo do universo, com o que o romancista, no último post em seu blog, não parece concordar, considerando os dias de hoje). Confiram o autor francês. A trajetória de Alain, com certeza, não passará desapercebida.
http://alainconny.blogspot.com/
Sérgio

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Aperitivo para Os negócios extraordinários de um certo Juca Peralta

Estou lendo Os negócios extraordinários de um certo Juca Peralta, de Sérgio Mudado, publicado pela Editora Crisálida. Leio lentamente. Quero toda a beleza do texto, a complexidade da trama e do tempo desta narrativa que me surpreende cada vez que a retomo.

Digo retomo porque (morram de inveja!) eu a vi nascendo. Por um desses mistérios do acaso, Sérgio Mudado e eu nos tornamos amigos via internet, desde que ele publicou Vassallu. Sérgio veio lançá-lo em São Paulo e algumas amigas livreiras me convidaram. Eu fui, comprei, pedi autógrafo e devorei o livro. Em seguida mandei um e-mail para ele – que me deu seu endereço – com um comentário sobre o livro. Dali em diante nos correspondemos sempre e, quando estava começando a escrever “Juca Peralta”, mandou-me alguns capítulos. Foi, uma vez mais, um susto, mas um susto muito maior do que o do Vassallu. Não porque se possa comparar um ao outro, mas porque a literatura de Sergio Mudado tinha se tornado mais audaciosa, tanto no tema quanto em seu tratamento. Uma história que poderia ser banal, era, nas mãos e na mente de Mudado, uma imensa aventura. E não estava distante no tempo (as Cruzada) ou no espaço (o Oriente Médio), como em Vassallu. Estava agora bem próxima, ali mesmo na curva da história do Brasil onde o trem apita, por assim dizer. Era contemporânea e, se não era conhecida, é culpa da imensa ignorância que teimamos em manter sobre nossa própria história.

A estrutura narrativa da obra era surpreendente e o tempo deixara de ser linear. A história ia e vinha no tempo enlouquecido da narrativa e comentários de seus personagens. Sergio Mudado ia tecendo, capítulo a capítulo, um tapete de fatos e vivências dos personagens. O tecido era feito da magia e do sonho que está no ato mesmo de criar. Enquanto construía esse tecido colorido e complexo, eu o acompanhava à distância. Quando o releio agora, já plasmado em livro, com uma capa linda e uma edição cuidada, levo novos sustos. Já não é o mesmo texto; a historia está mais rica; as paisagens, mais vivas; os personagens revelam novos traços e nuances. Como foi que eu não vi antes? Isto é parte da magia de Os negócios extraordinários de um certo Juca Peralta.

Logo trago uma resenha – que jamais fará justiça à obra – apenas para que possamos pensar juntos. Antes disso, vão lendo, vão lendo...

Edith Piza – SP 23/11/2010

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

JANELA

(Pequeno conto publicado no O Caixote)
O trânsito, naquele horário, até que não estava ruim na Avenida Afonso Pena. Duas horas depois, podia-se prever, aquilo estaria um inferno de carros, cansaços e rancores, misturado ao corre-corre habitual do poviléu, de vida sempre apressada. Bem, lá estava eu, liberado do dia, indo para casa mais cedo, uma folga justa e merecida. Da janela do carro, tinha observado que A viúva alegre encontrava-se em cartaz no Palácio das Artes, e acendi um cigarro que, em absoluto, não precisava fumar naquele momento, creio que o fiz motivado pelo cartaz pomposo do teatro. O cigarro, porém, tornou-se melhor quando o rádio do carro começou a tocar Dust in the wind, do grupo Kansas, música que adoro. Essas coisas: imagens, som, prazer, e lá vou eu embora, dia ganho e... Basta.
Pego a pista esquerda, mais solta... Que coisa, tudo dando certo, outra tragada e, me diz a música linda: Tudo que eles são é poeira ao vento, all they are is dust in the wind... O sinal luminoso torna-se amarelo, num cruzamento. Já estou mesmo devagar, apenas vou roçando o freio, de leve... Paro.
Então vejo aquilo. No passeio central, um corpo estendido, uma mulher, presumo, vestida com uma blusa amarela, uma calça azul, deitada de lado, um dos braços esticados além da cabeça, completamente imóvel, atrapalhando os transeuntes. Teria desmaiado? Estaria morta? O povão, aos borbotões, desvia-se do corpo, passa apressado. Nenhum guarda, merda, eles que sempre dão sopa por aí, para cumprir a sanha de lascar multas a torto e direito. E a mulher, lá, deitada, quieta. Sabe? Existe até certa graça naquele repouso dela, uma beleza em sua solidão. Morta? Quem queria saber? Aquilo não é lugar de dormir. Bêbada, talvez, a miserável. Digo apenas que ela está lá, não estou imaginando isso, como também não estou imaginando aquele povo todo pouco se lixando para aquilo: povo pé-de-vento, pó ao vento. Ao sinal verde, meu carro arranca-se dali, deixa para trás a mulher deitada em sua solidão amarela, no canteiro central da avenida, com o povo, em sua pressa, se desviando dela, a vida é mesmo muito ocupada, isto é bem certo, merda, por que nessas horas não se avista uma mísera farda?
Não fiquei, nem pensem nisso, indignado ou revoltado, sem essa de ficar culpando o governo por todas as mazelas, não, que nada, disso desisti há muito. Estamos todos limpos, eu, minha consciência, todos nós... O carro rodando, a lembrança amarela e deitada ficando para trás, sua visão diminuindo no retrovisor, a música terminando... Tudo é poeira no vento, everything is dust in the wind...
Havia, porém, uma coisa, apenas uma, e incomodando forte: um vazio absurdo, subitamente, instalou-se em meu interior, e na ânsia de preencher-se, buscava arrancar o meu ser de mim mesmo, atirando-o fora, tal e qual minha mão fazia com o toco do cigarro que acabara de fumar.

sábado, 20 de novembro de 2010

Monteiro Lobato

Conheci, aos dez anos de idade, a obra infantil de Monteiro Lobato. Por que cargas d’água meti as mãos num primeiro livro desta coleção, que pertencia a minha irmã, não faço idéia. Espiei, tomei um volume da estante e, curioso, abri suas páginas. Até o cheiro exalado das folhas era bom... Ali começava uma aventura que mudaria toda a minha vida: o prazer da leitura, e as extraordinárias maravilhas que isto encerra. Além de todos os perigos. Ora, não me estenderei muito nisso. Digo apenas que, o moleque que não saía da rua, para o espanto de sua mãe, doravante passava horas e horas, enfurnado, lendo, lendo, lendo sem parar as aventuras de Pedrinho, Narizinho, Emília, do Visconde, do Marquês de Rabicó... Muitos passaram por esta maravilhosa experiência e sabem muito bem o que estou falando.
Assim, quando entrei no ginásio, conhecia todos os fundamentos da Mitologia Grega, lidos, avidamente, nos Os Doze Trabalhos de Hércules... No entanto, o que mais importou realmente foi outra coisa. Ao término da história de O Saci, aconteceu algo que jamais me esquecerei. Depois da aventura tremenda, Pedrinho (eu, é claro) e o saci enfrentando juntos perigos medonhos – até mesmo a terrível Cuca – pois exatamente neste momento de glória, o saci, sem se despedir de ninguém, vai embora, parte para nunca mais voltar. Justamente quando se tornara tão amigo e querido de todos os habitantes do Sítio da Dona Benta e, pela magia da leitura, amigo principalmente deste leitor-mirim, enfeitiçado. Ai! Aquilo me produziu aperto no coração, nó na garganta, uma tristeza esquisita, cheia de saudade e abandono... No entanto, a redenção! O saci havia deixado uma lembrança, assim narrada pelo autor: “Que é do saci?” Procuraram-no por toda parte, inutilmente. O heróico duendezinho duma perna só havia desaparecido. – Ingrato! – exclamou Narizinho com tristeza. – “Foi-se embora sem nem ao menos despedir-se de mim...”
De noite, porém, ao deitar-se, verificou que havia sido injusta. Em cima do travesseiro encontrou um raminho de miosótis que não podia ter sido posto lá senão pelo saci. Miosótis em inglês é forget-me-not – que significa não-te-esqueças-de mim.
Fui invadido por uma sensação forte e boa. Fechei o livro, afaguei-o e, num gesto irresistível, abracei-o forte contra o peito. A bela história, o raminho de miosótis, todo o seu significado, produziu um abalo na alma do menino de dez anos, em sua primeira leitura de verdade. Percebi-me diferente, alguma coisa muito importante tinha acontecido comigo – senti que não era o mesmo, que jamais seria o mesmo. Um abalo perene... Outro mundo abriu-se ali, ou, visto de outra forma, algo sobrenatural marcou-me a testa. Com o passar dos anos, percebi que este sinal era abençoado e palmilhou o meu caminho para pretender alcançar o que talvez denominemos Liberdade.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

PANIFICADORES EXTRAORDINÁRIOS

Peça em um ato

Cenário: interior de uma padaria

(Um aspirante a padeiro recebe, de Mestres-Cucas, ensinamentos e os segredos do preparo do melhor pão.)

RILKE: Pois bem, jovem padeiro! Usando da licença que me deu de aconselhá-lo, peço-lhe que deixe tudo isso. E use, nesta fase, suas próprias mãos. O senhor está olhando para fora, e é justamente o que menos deveria fazer neste momento. Em verdade, nesta concepção culinária ninguém o pode aconselhar ou ajudar – ninguém. Não há senão um caminho. Procure entrar em si mesmo. Investigue o motivo que lhe ordena fazer esse pão. Examine se a vontade de fabricá-lo estende suas raízes pelos recantos mais profundos e famintos de sua alma. Confesse a si mesmo: morreria se lhe fosse vedado produzir esse pão? Sou mesmo forçado a fazê-lo? Escave dentro de si uma resposta profunda. Se for afirmativa, se puder contestar àquela pergunta severa por um forte e simples “sou”, então obre e dê existência ao seu pão de acordo com essa necessidade.

FLAUBERT: Trabalhe, trabalhe, misture o trigo às gemas frescas o quanto você puder, o quanto sua massa possa lhe arrebatar. Use açúcar com parcimônia, a manteiga sem ranço, uma pitada de sal e farinha de qualidade para polvilhar. Trabalhe, trabalhe. O cansaço da existência não nos pesa mais nos braços quando produzimos o pão verdadeiro, o que pode saciar.

SCHOPENHAUER: A tarefa do bom panificador não é fabricar grandes pães, mas tornar deliciosos os pequenos.

RILKE: Se acontecer do trigo vir misturado ao joio, e lhe parecer pobre, não o acuse. Acuse a si mesmo, diga consigo que não é bastante bom padeiro para extrair as riquezas do grão sagrado.

FLAUBERT: Nada é mais seu do que o pão que lhe pertence enquanto é feito e a mais ninguém é dado possuir o segredo de produzir esse milagre. A massa no ponto perfeito: eis a verdadeira verdade. Penetra nos seus ingredientes... Fica neles, explore-os...

PROUST: Explorar? Não apenas explorar e modelar a massa com os dedos: assá-la também requer tino e paciência. E ao observar o interior do forno, mirar como quem se encontra diante de qualquer coisa que ainda não existe completamente e a que só um verdadeiro cuca pode dar realidade e fazer entrar em sua luz...

FLAUBERT: Em sua luz e depois em nossos olhos, bocas e, enfim, em todo ser.



TODOS:

O mister de fabricar o pão sagrado
Exige o interior mais íntimo,
Um bastidor aparentemente insondável,
Onde a contemplação e manuseio do pequenino,
Do aparentemente insignificante,
Busca a grandeza, o sabor e o significado.

(Cai o pano. Escuridão e silêncio. No ar, como um eco suspenso, pode-se ouvir a voz de Proust: Os pães verdadeiros se geram não na luz das vitrines e prateleiras, mas no silêncio e no calor do forno... Silêncio quebrado pelas portas da padaria se abrindo.)

VOZ: Bom apetite, estimados ouvintes.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

O Nome, a caixa e a pérola

Os leitores do Juca Peralta devem ficar atentos para um acontecimento ainda mais extraordinário que os próprios negócios do Juca. Existiu, ao longo da tessitura da obra, uma Leitora, real. Se o romance foi provido de alguma qualidade literária, acreditem, esta Leitora está implicada nisso, até o pescoço. Seu nome está lá, creditado ou, melhor dizendo, em registro criptográfico, pois não estou autorizado a revelá-lo, abertamente. Houve, acreditem, muita magia ao longo da confecção desse livro. E enquanto aguardo, de modo muito tranquilo, as primeiras críticas, vou, para acalmar esta minha tranquilidade, continuar falando um pouco mais do Vassallu, agora pela voz de Edith Piza Peralta, em um texto publicado em 30/03/2006. Voilà:

Uma caixa de Pandora e sua pérola escondida
Edith Piza

Acabo de ler Vassallu, de Sérgio Mudado.

Não posso traduzir, ainda, todo o impacto deste romance sobre mim, porque Vassallu foi criado para ser refletido e madurado na mente e no coração do leitor. Entretanto, há coisas que não querem calar:

Impressionou-me primeiramente o narrador. Que belo narrador! É e, ao mesmo tempo não parece ser, onisciente; igualmente é, e não parece ser, onipresente. Narra a história em primeira pessoa, para um príncipe; e preocupa-se em ser fiel aos fatos. Tudo que sabe (e sabe de tudo) testemunhou; aquilo de que não foi testemunha faz com que se acredite que tenha deduzido logicamente. É ele a personagem que nos guia para todo canto, para o interior de outros personagens, para dentro daquele mundo, daquele tempo, daquelas histórias de seres humanos, de suas virtudes e paixões, de seus duplos e seus fantasmas. Não há como não segui-lo e sempre esperar por mais. Seu prazer, e ele não esconde, é intrigar, espionar e assistir as conseqüências trágicas de suas táticas. Busca conhecimento sobre tudo, como quem busca água no deserto. Conhecimento que dá poder, para manejar o destino do mundo e dos homens. Incansavelmente curioso, lê tanto nas estrelas, como nas entrelinhas das almas que cativa, ou das que ameaça.

E aí, vem a segunda impressão. Certamente estamos diante da antiga luta entre o Bem e o Mal, como outros apontaram. Entretanto, pressinto que o que se passa em Vassallu é uma história sobre a construção do Mal. Como construtores do mundo, temos o poder de nomear seres e coisas. Uma vez nomeado o ser, ou o objeto, ele ganha as dimensões que lhe dermos. Bem e Mal não estão nos seres e nas coisas, mas naquilo que o conjunto mais poderoso da sociedade nomear como do Bem ou do Mal. Nada, neste romance é, em si, absoluto e nada, nem ninguém, tem apenas duas faces. Talvez por isso os personagens sejam marcados pelo signo da ambigüidade. Não se pode resolvê-los pelo simples apelo a um Bem absoluto contra um Mal absoluto. Nada se supera; tudo convive. Também Deus e o Diabo; eles igualmente ambíguos, (re)construídos a cada época, na boca dos homens. Aquilo que se comete com ferocidade de demônios é o que o “deus” – (re)inventado por aqueles que o colocam como fiador de suas crueldades - espera e abençoa.

Sob a capa da fé e do temor a Deus, o discurso do narrador deixa transparecer uma intrigante e lúcida descrença, no interior da qual todo bem e todo mal é possível, porque é humano. Mas, não ético (e a ética é também construção). A ética serve para alguns, mas não para outros. Os fanáticos, os gananciosos, os ávidos de poder desconhecem-na propositadamente, ou a invertem. Para estes, Deus tem muitos nomes e nenhum é sagrado. E o Diabo? Ao diabo com ele! Que nos sirva de testemunha!

Em fim, ler Vassallu é como entrar na espiral da História e se encontrar em alguma volta, onde passado e presente se defrontam, como universos paralelos. Tudo nos parece muito distante e muito próximo. Como diria o narrador: Uh! Não e não, sire, não é mera coincidência.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Um bonde chamado saudade?

Um bonde passava agora pela Jacuí, quebrava o silêncio. Fiquei atento. Sua música - estranha como a saudade - embalou-me até sumir ao longe no tempo... (Sérgio Mudado)
 

A Leitora encantada

Começo a receber notícias sobre o Juca Peralta. Esta fase é de muita ansiedade para o autor. Quando o Vassallu foi lançado, ele ganhou muitas estrelas, quase polvilhei o meu céu. Mas uma das críticas partiu de alguém que não conheço e, admito, foi a que mais me impressionou. Gostaria que essa pessoa - Marine - tivesse acesso ao Juca, que o lesse e, principalmente, gostasse da leitura. Vou colar aqui o comentário feito à época, para o Vassallu:


Marine / Data: 28/1/2006
Conceito do leitor:
Historia e Emoção - Os personagens tem estilo, a escrita é elegante, o fascínio da leitura de ficção baseada em História do ser humano nos transporta, e envolve na atmosfera; Houve momentos que cheguei a sentir medo...como se estivesse vivendo o que lia. Livro de não largar!!!

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

O livro luminoso da vida


“Não foi Nietzsche quem chamou o homem de ‘animal doente’? E não quis dizer, com isso, que o homem é mais que animal, quando está doente? Ou seja, quanto mais doente estiver, será homem em grau mais alto. E que o gênio da doença é mais humano do que o da saúde.” Palavras de Thomas Mann, o vento norte que (como negar?) enfuna as velas da minha pequena embarcação. Assim enfunado, na terceira parte de Os negócios extraordinários de um certo Juca Peralta, passada dentro de um sanatório, criei um personagem, o Fanadinho, um jovem judeu acometido de tuberculose no último grau. Tal qual o Ipollit, de O Idiota, de Dostoievisk: ambos personagens condenados à morte por seus autores através da peçonha da velha Senhora, a tuberculose pulmonar. Esse Fanadinho, atazanado como eu pela relação entre a transitoriedade e o processo criativo, cria uma esdrúxula teoria, denominada Gaffky Oito. E que diabo vem a ser isso? Ora, a escala de Gafkky, que varia de 1 a 9, mede, em laboratório, o número de bacilos contidos numa amostra de escarro do tuberculoso. O leitor de A montanha mágica conhece muito bem o Gaffky, os pacientes do Berghof viviam assombrados por ele. Mas retomemos. Fanadinho supunha que ao se atingir o nível 8 desta escala, o doente seria intoxicado por uma espécie de linfa criativa, de cálida natureza e de extraordinária propriedade, produzida e disseminada a partir dos focos das destruições pulmonares promovidas pela doença. Tal linfa, indo banhar os centros superiores, o delicado parênquima nervoso, proporcionaria enlevos sobre-humanos. Assim iluminado, o tísico produzia sua bela obra. Se quiserem conhecer alguns artistas célebres que, presumidamente, enquadraram-se na teoria do Gafkky Oito e foram geniais, leiam o Juca. Nele, tudo isto é revelado, com detalhes picantes, o que deixará vocês pasmados.
No entanto, toda esta peroração tem um motivo mais importante, e este se chama O livro luminoso da vida (Escritos sobre literatura e arte), de D.H. Lawrence, numa primorosa seleção e tradução do Mário Alves Coutinho, da Editora Crisálida. Lawrence, com os pulmões carcomidos pela tuberculose (Gakffy 8, com certeza) discorre, com beleza e vigor, sobre autores e temas que lhe são caros. “O romance é o livro luminoso e pode fazer o homem vivo estremecer inteiro.”, diz Lawrence.
É verdade.
E é imperdível.

Tudo que vive é sagrado

Então deixe-me viver para que eu possa morrer
ansiosamente deslizando da confusão da vida
para a aventura da morte, com ansiedade
voltando-me para a morte como me volto para a beleza
para o sopro, isto é, da nova beleza deabrochando na morte.
(D.H. Lawrence)

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

EU PERGUNTEI AO VELHO SE ELE QUERIA MORRER

"A vida é isso, um fiapo de luz que termina na noite." Esta frase, assinalando sem delongas a transitoriedade, encontra-se numa obra-prima - Viagem ao fim da noite - do escritor maldito Louis-Ferdinand Céline. À primeira vista pode parecer que a transitoriedade é algo muito triste. Qual o que! Thomas Mann, meu autor de cabeceira, diz que ela, a transitoriedade é a alma do ser, é aquilo que proporciona à vida, valor, dignidade e interesse, pois ela cria o tempo. Onde não há transitoriedade, princípio e fim, nascimento e morte, não há tempo - e a falta de tempo é o nada estagnado, o desinteressante absoluto. Santificar o Tempo, criar, eis o dom concedido ao Homem. "... e isso é essencial para o criador - dançar enlaçado ao Tempo...", lasquei lá pelas tantas no Juca Peralta. E agora você pergunta: E o que isso tem a ver com aquele "Eu perguntei pro velho se ele queria morrer", encimando este discurso. Esclareço: este é o título de um livro de contos de José Rezende Jr., prêmio Jabuti. Pudera. Nesta obra, o leitor é levado a participar de uma dança de amor - às vezes macabra - que ocorre entre os personagens e o Tempo. Genial.

Benedito Nunes, recebendo o segundo Jabuti


quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Benedito Nunes




Benedito Nunes

“... Ó memória, toma cuidado com tuas rosas de sal. A grande rosa da noite alberga a estrela em seu seio como um besouro dourado.”

Retiro o verso acima do livro Crônica (Chronique) da obra de Saint-John Perse. Já ouviram falar desse poeta maior? Ele me foi apresentado pela poetisa paraense Lília Silvestre Chaves (E todas as orquestras acenderam a lua) que prefacia a obra, uma edição bilíngüe, com tradução de Benedito Nunes e Michel Riaudel.
Saint-John Perse nasceu em 1887, numa pequena ilha das Antilhas cujo nome parece um verso capaz de fazer brotar poetas: “Saint-Leger-les-Feuilles”.
Assim conheci o Perse. E o Benedito Nunes.
Vi o velho mestre, pela primeira vez, participando de uma mesa redonda na Faculdade de Letras da UFMG. Encontrava-me ao lado de Lília Chaves, e me era impossível desviar o olhar da luz que parecia fulgurar da cabeça de barba e cabeleira brancas do grande homem. Podíamos sentir: ele tirava das palavras alimento e alegria. Magnetizado, solicitei a poetisa, também uma pintora excepcional, que fizesse a caricatura do professor, naquele momento. Ela retirou da bolsa papel e lápis. Captou: o resultado foi pra lá de bom. Vocês podem ver, com os próprios olhos, o Tio Bené em ação, luminoso, parecendo atender ao chamado de Perse: “Ergue a cabeça, homem da noite. A grande rosa dos anos gira em tua fronte serena.”
Retorno a Perse nas palavras de Lília. Chronique foi escrito e publicado em 1959, um ano antes de o poeta receber o Prêmio Nobel. Dedicado a Chronos – o Tempo – ao Homem e à Terra. Trata-se de um cântico à existência da Humanidade. “Errantes, ó Terra, sonhávamos...”
Volto a Benedito Nunes. Nem por sonhos mais insanos e ousados, naquele momento, naquela platéia, eu poderia imaginar que teria, no futuro, dois romances meus – Vassallu e Juca Peralta – apresentados pelo grande mestre paraense.

Quanto privilégio. Quanta honra.




quarta-feira, 10 de novembro de 2010

O Quarto Selo (1989)

África! A cabeça de Holmes girava, seus sentidos, talvez afetados por uma reação idiossincrática à cloroquina, pareciam ampliar sensações bizarras que lhe sobrevinham naquele local, e que atingiram o máximo ante a visão do rastro sanguinolento deixado pela presa arrastada pelo leopardo. Mãe e filho estariam alimentados... Por alguns instantes o escritor pensou experimentar o gosto e o cheiro adocicado e morno daquele sangue, cujas manchas, salpicadas no solo, indicavam um enigmático paradoxo: o caminho da morte levando à vida...

Uma vez ontem (1997)

Escutei o ar.
Um bonde passava agora pela Jacuí, quebrava o silêncio. Fiquei atento. Sua música - estranha como a saudade - embalou-me, até sumir ao longe no tempo...