quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

A luz do cais

Para Renato Mudado



Enfim, uma festa de fim de ano razoável no Departamento, salgadinhos finos e, admita-se, aquela delicada musse de abacaxi com passas, oferecida sobre tenros pãezinhos árabes, fora maravilha de se regalar, saboreamos o acepipe de modo vergonhoso, se me permitem exagerar um pouco. Pena ter se mesclado àquele xarope branco alemão que insistem em chamar de vinho, ainda com qualidades e predicados, sacrilégio, puro sacrilégio. Quebra de regozijo? Nem tanto: o pessoal dançou, aplaudiu, conversou sobre solidariedade, paz, ventura, essas coisas, mais a puxação de saco dos chefes, o que acontece em todos os lugares e todas as eras... Valeu, no entanto, tudo tem valido nestes tempos em que o viver transformou-se em sobreviver, e sobrevivemos à duras penas, concordam? Principalmente no Natal, pois aí o bicho pega e uma das patas desse bicho chama-se depressão, com unhas arranhando a torto e direito, sem dó, ora, você sabe muito bem do que estou falando.
O que não sabe é que já saí da festa e lá vou eu, nesta noite de cerração, lá vou eu enternecido de paz e solidariedade, subindo a alameda, a caminho do estacionamento do hipermercado, onde estaciono o meu carro...
Então aquilo: a visão de uma cena, logo à entrada do supermercado, faz com que uma fria lâmina, do medo, me penetre até a medula. Um segurança, alto e forte como um carvalho, está detendo uma velhota, Volte, tia, vamos voltar, e, enquanto um de seus braços cerca a tentativa de avanço da senhora, a outra mão já leva o rádio à boca, Temos um 174 aqui, na saída 2, câmbio... Tia, vamos voltar lá pra dentro, tia, vai ter que devolver... Não pode ir se mandando assim, tia... Ela, com duas sacolinhas agarradas ao peito, protegidas como bebês, tentava romper o cerco de carvalho, Moço, deixa eu ir embora, deixa eu ir embora, não tirei nada... Tirou sim, tia, venha, vamos, não complique as coisas...
Contemplei a cena, meu coração, acelerando, fazia ainda mais pesado, mais temeroso e mais opresso de presságios. Tratava-se de uma velhota surrada pelo tempo: alta, robusta, com blusa e saia sem cor definida, um desses beges escuros, de sujeira disfarçada. Só não tinha a boca totalmente murcha, pois dois enormes dentes inferiores projetavam-se de gengivas retraídas, quando repetia, altiva, olhos miúdos e sem medo, Me deixa ir embora, moço, deixa eu ir, o que é isso?... E falava apertando com mais força as duas pequenas sacolas contra o corpo.
Novos seguranças chegam, Câmbio, câmbio, que estupenda movimentação, furto é furto, e a velhota está agora completamente cercada, Câmbio... O frio do medo continua trespassando minha medula, explico esse pavor: a ditadura militar colheu-me no início da adolescência, ah, aprendi, como aprendi a ter medo de botas, de quepes, de polícias, de rádios de mão, dos malditos câmbios operantes positivos, putamerda, ainda hoje, os cabelos já nevando a cabeça, sinto o coração disparar quando, numa simples blitz de trânsito, um meganhazinho de merda me pede documentos...
Medo.
Sei que muitos de vocês, de cabeça já nevadas, ou, pior, carecas, sabem muito bem do que falo. E me entendem.
Permaneço, atraído como um sapo pela cobra, a observar a cena, Me deixa ir embora... Não, Tia. Vamos voltar pra dentro. Não me obrigue...
Pague pra mim, moço...
Pague pra mim.
Ela, a velhota, dirigiu-se a mim. Sobressalto.
Não tenho dinheiro..., tartamudeei. (O que era verdade, não trazia nada na carteira, exceto umas poucas moedas, troco de dois maços de cigarros que comprara antes de ir para a tal festa de fim de ano, putamerda, a musse de abacaxi, misturada ao vinho, subiu-me à garganta, azedando.) Voltei-lhe as costas, sim, voltei-lhe as costas, desci, célere, a rampa rumo ao estacionamento, um cigarro já era tragado com sofreguidão.
Entrei no carro, respirei fundo e, com os nervos mais ou menos tranqüilizados, dei a partida. Antes de me arrancar dali, não sei por que cargas d’água, eis que, de súbito, sobreveio-me, à mente, uma cena remota de minha vida, fui arrebatado para uma certa hora e um certo lugar, acontecera, repito, havia um bocado de tempo, mas surgiu-me como uma impressão vigorosa, de intensidade... Era um recém-formado e acabara de arrumar o meu primeiro emprego, no Departamento. Vocês se lembram dos primeiros salários, não é mesmo? Produzem sonhos e assim, em sociedade com o meu irmão Renato, comprei o primeiro carro, um fusquinha 66, vermelho desbotado, bem ruinzinho o miserável, no entanto, nosso. Meu e do Renato. E era lindo.
A cena ocorreu ao término do expediente, quando, juntamente com um colega de serviço, esperava pelo irmão, que viria me buscar no nosso fusquinha, recém-adquirido, bárbaro. Éramos todos jovens, sonhos escondidos no coração, a Ditadura amordaçando e ferindo o que podia. No passeio, enquanto aguardava o Renato, meu colega e eu espiávamos o trânsito da avenida. Então aconteceu de um pneu de carro furar justamente ali. A mulher que dirigia o veículo conseguiu levá-lo para o retorno aberto no canteiro da avenida, bem defronte a nós. Meu colega, sorriso maldoso, logo disse: Vamos ver como ela vai se virar com esse pneu... Concordei, tolamente, e ficamos a observar a luta da mulher com o macaco, chave de roda, esforços grandes para a sua fragilidade, o colega sorrindo, eu, besta, sorrindo também, e assim estávamos, a gozar o espetáculo, quando o fusquinha 66 chega, atravessa a passagem do canteiro, estaciona, seu motorista desce do carro, sequer olha para nós, dirige-se rapidamente ao carro da mulher, e num átimo, troca o pneu furado, ajeita o resto das coisas no porta-malas, a mulher agradece, ele apenas acena a cabeça, atravessa a rua, agora em minha direção e diz: Vamos embora?
Fomos. Em silêncio.
Arranquei o carro, diacho, vou me mandar daqui, nada tenho com isso, com aquela mulher das sacolinhas, merda, merda, se não voltar lá não durmo nunca mais.
Freio. Tenho a testa suada.
E tenho também o meu cartão de crédito, pago aqueles trecos, porra. E pronto.
Estaciono, novamente, desço e a passos rápidos e decididos, volto ao local do crime.
Lá estava ela, perto de um dos caixas, ainda altiva e cercada por seguranças, dizendo, com os dois dentões inferiores sobressaindo, A gente não leva nada deste mundo, não levamos nada, nem eu, nem você, nem ninguém... O segurança-chefe, no entanto, retrucava, Não se tira o que é dos outros, tia... E ela, Mas aqui tem muito, moço, tem demais, tem de sobra, não sou ladra. E o outro, Mas o hipermercado não é nosso, tia, se quiser levar tem que pagar...
O que ela tirou?, perguntei. Um dos seguranças me puxou para o lado, Doutor, não se preocupe, ela sempre faz isso, é meio louca, sabe? Roubou picanha e lingüiça defumada, esperta, não? Ela está sempre aí... Olho para a velha, não se leva nada deste mundo... E os dois dentes imensos pareciam contestar isso, ela os levaria quando morresse, Ela é esperta, doutor, picanha, lingüiça defumada, bico fino, não caia nessa esparrela, é sempre assim, ela busca um otário, nós manjamos ela, está sempre aqui... E a velha, cansada de dizer que nada se leva desse mundo, que uns pedacinhos de carne não fariam diferença para aquele mundão de hipermercado, mas faria diferença para os seus netos, abaixou a cabeça, pela primeira vez. Cedia.
Sim, eu tinha o cartão de crédito no bolso. Mas não sou otário. Picanha, lingüiça defumada? Que espertalhona, é louca, mas sabe escolher o que há de melhor... E é contumaz, diacho. A musse subiu o esôfago novamente, azedou tudo. Não esquenta, doutor, ela está sempre aí, ladra, contumaz, só pega coisa boa, por que não escolheu músculo? Tinha que ser picanha?...
Fico zonzo, afasto-me da cena, não sou otário, não pagarei aquilo, picanha, não pago, se ainda fosse músculo, mas picanha!... Sigo em frente. Estou um pouco confuso, mas sigo em frente. Quero olhar para trás, mas sigo em frente, não olho... Chego ao carro, um fusquinha 66. Renato está ao volante, ele não titubeara um só instante, chegou, viu e trocou o pneu. Vamos? Sim, vamos. Não sou otário, vamos, em frente, vamos, nada levamos mesmo deste mundo...
Está escuro e nublado, o fusquinha avança, noite adentro. Não enxergo um palmo além do nariz, mas o fusquinha vai célere. Não enxergo, até que um clarão ilumina-me o cérebro e então percebo: o Renato, ele teria pagado, claro que sim, redimiria a dignidade daquela mulher, não daria confiança para os seguranças, nem para ninguém, apenas faria o que deve ser feito, por isso ele avança sem medo neste breu de vida, ele se guia pelo retrovisor, como aquele pescador que na madrugada escura e nebulosa, avança mar adentro, seguro, guiado pela luz do cais de onde partiu.
Olho para trás...
A escuridão do cais preenche o vazio do meu ser.
(O Caixote, dezembro de 1999)

2 comentários:

  1. Sérgio, prometi a minha história natalina de 1999. Eis!

    O presente da moça

    Nana, Nana, só mais um! Levantando o dedinho, a menina pedia prá moça: - Nana, só mais um! E lá ia ela mostrar sua nova descoberta. Correndo, jogava-se no sofá, que ao receber a menina com tanto impulso, escorregava, amparando-se na parede. Nana, Nana, só mais um! Moto-contínuo de felicidade fugaz, ladainha de alegria, a repetir-se, repetir-se, em tempo tão curto. A criança banhando-se em sua infância em curso, olhos explosivos de contentamento. Nana, só mais um! O mundo ali, todo enorme na brevidade minúscula do pequeno brinquedo. Uma duas, três, quatro, cinco... - Nana só mais um! seis, sete, arrasta a menina, com o dedinho levantado, o olhar da moça, que acompanha, compartilha e se alegra. Só mais um, só mais um, tênue sensação, perdida na infância lá longe da moça, onde o brincar era tudo. Nana, só mais um! acalanto invertido, embalando a moça numa serenidade profunda. Tudo tão seguro e calmo. Colorido de vozes e gritos e risos.
    Adriana Gragnani
    26.12.99

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  2. "...por isso ele avança sem medo neste breu de vida, ele se guia pelo retrovisor, como aquele pescador que na madrugada escura e nebulosa, avança mar adentro, seguro, guiado pela luz do cais de onde partiu."
    Nesse cais tem muitas luzes, Sérgio. E uma das mais fortes e brilhantes com certeza é você.
    E sei que você sabe disso. Quantas vezes procurei desesperadamente oxigênio para os meus pulmões. Fôlego, além de ser o ato de inspirar e expirar o ar é também a capacidade de trabalho.
    E não é qualquer um que tem fôlego para escrever romances. E você já fez quatro. E com que maestria.
    Me orgulho muito de ser seu irmão.
    Renato Mudado

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