domingo, 28 de novembro de 2010

Tons de criar



Para Anette Lomaski (Noel)
Para os criadores do O Caixote
Para Monteiro Lobato

"A verdade é uma mentira bem pregada."
Emília, Marquesa de Rabicó

I

Uma advertência: o leitor – e aqui me refiro ao leitor de O Caixote, tão afeito, de maneira geral, ao processo criativo – esse leitor caixotesco deverá ficar atento aos fatos estranhos e até mesmo espantosos que lerá nos parágrafos seguintes e, portanto, que se cuide, evitando qualquer malefício que disso possa advir.
A história, no entanto, acalme-se, não é, de modo algum, de terror. Quase todos conhecem a Noel, a sumo, uma peste de mulher que freqüenta a salinha 1 de bate-papo e também, em contos, este O Caixote, da gata vermelha & Cia. Pois a Noel, a escritora, em que pese ser uma metralhadora que gira e dispara descomposturas fuzilando, na sala, gregos e troianos, tem uma delicada peculiaridade: gosta das palavras – e gosta pra valer. Com elas brinca como se fossem pedacinhos de massas multicoloridas na mão de uma criança hábil. De seus dedos, as palavras digitadas escapam como crianças em algazarra no recreio, rodopiam brincando de carrossel, libertam-se como passarinhos soltos no azul infinito. Dom reconhecido, não é de se estranhar que Noel, a normal, seja a autora de um romance denso, de trama delicada, que narra a saga de uma personagem chamada Edla, uma menina judia, de inteligência aguda, perspicaz e sensitiva e – o mais lindo – dona de uma fantasia capaz de criar um maravilhoso parceiro imaginário nomeado Tom – com quem divide as encrencas e todas as aflições presentes na infância... Infância de uma criança especial, assinalada na testa com um dom...

Ouça o canto de Edla:
“Nos finais das tardes, Tom se sentava na beirada da janela e nós tínhamos conversas longas e formidáveis (...) Quando, anos mais tarde, descobri que muitas crianças tinham amigos imaginários, foi constrangedor. Não me agradava ter nada em comum com pessoas normais... (...) Eu mentia muito para Tom. Dizia-lhe que tinha um preceptor, e que eu sempre colocava aranhas e outros bichos asquerosos em seu chá...”
Querido leitor, ponha tento nisto: uma primeira confusão já pode estar se principiando e devemos, rapidamente, desfazê-la. Acontece que eu também, na sala 1, tenho o apelido de Thom e se este relato fosse lido em voz alta, quem ouvisse Tom (da Edla) ou Thom (de Thomas), ouviria a mesma coisa, esse agá, aí, importa apenas aos olhos, enxerga-se viril, mas aos ouvidos é inócuo, surdo.
Pois o Tom da Edla, um ser sentido situado fora dela, é puro interior, o tesouro mais recôndito, a própria semente da criação... Ouça a menina falando dele, e o fazendo, por assim dizer, usando palavras delicadas como fios de luz de asas de borboletas adejando - como um poema soprado ao vento da saudade:
“Eu ficava mais calma quando Tom estava por perto. Com ele tagarelava o tempo todo por telepatia. Eu gostava que ele me contasse as prováveis histórias por trás de cada uma das capas de livros que eu via nas livrarias, a caminho da escola. Depois de cada uma dessas conversas, eu atazanava os meus pais até que eles comprassem o livro em questão, e o lia avidamente à procura da história que Tom me contara. Aí, eu contava a Tom a outra versão: aquela do autor.”
(Oh! Bonito com um adágio beethoviano.)
Outra diferença: se o Tom de Edla conta histórias lindas, que nunca leu, o Thom aqui, outrora também um contador de histórias, anda, nos últimos tempos, meio ressabiado com as palavras, que com ele não mais querem se divertir, ou tão-somente querem brincar de esconde-esconde, de buscar a escuridão, de fugir de entrar em sua luz...
Ah, Edla! Criativa, independente, vivendo em um tempo em que tão-só se deve viver em paz e harmonia com um mundo de fantasia, saía do círculo da inocência e, precocemente experimentava o sabor amargo dos pequenos dramas, de peso imenso, como se a vida adulta, com as suas terríveis ameaças e desesperanças, lá do futuro, já rosnasse para ela, forçando, extemporaneamente, a meter-se no presente da menina.

Foi quando brotou, sem quê nem por que, dentro do deserto que anda expandindo-se em mim, a idéia de um conto... Mas, preste atenção: um conto, caro leitor, a ser escrito pela própria Noel, pois a idéia versava sobre a Edla e o seu Tom. Roteiro simples: Edla sofreria alguma crise existencial, uma descrença de Deus, por exemplo. E nesta crise de fé, ouviria, sem querer, algo sobre a Cabala – o misticismo judeu – com o seu sentido mágico, na qual as palavras têm grande poder. Pesquisando a respeito, a menina acabaria por exigir do seu Tom a criação de um golem, uma estátua de barro, a ser vivificada por palavras. E, neste gesto de criação, recriaria a si mesma...
Pelo ICQ contei e passei um resumo desta idéia para a Noel.

NOEL: Ora bolas, você já tem o conto, ele é seu, por que não o escreve, Thom?

(Ai! Por quê? Tenho dito aqui a você, leitor: porque as palavras, que antes vinham à luz tão rapidamente, como bolhas desprendidas do fundo escuro do mar, atingindo a superfície e, sob o sol, tornadas borboletas, voejando coloridas, hoje, semelhantes a morcegos ariscos, fogem para bastidores internos, desaparecendo através de fendas, mergulhando em escuridões inacessíveis à luz, onde não me atrevo a penetrar...)

THOM: Mas Noel, como posso escrever este conto? A idéia é para uma menina, uma menina judia... O conto é seu, escreva-o, dedique-o a mim, se quiser...

NOEL: Você não pode ser uma menina judia, Thom? Que merda de escritor é você, que não pode ser uma menina judia? Escreva-o. Depois quero dar uma olhada no resultado, sinto-me até honrada... Não some não, beijo, estou indo, antes que esta conversa fique ainda mais chata. Fui...

(Que merda de escritor eu sou, que não posso ser uma menina judia, hem?)
II

De Edla:
Eu me sentia enganada. Depois de terem me feito ler todo o Velho testamento e estudá-lo, eu descobri que um tal de Jesus Cristo tinha nascido para nos salvar.
– Vó, o que é o Espírito santo?
Minha vó se encheu de energia para responder uma pergunta tão católica.
– Você não acredita nisso, não é?
– Como eu vou saber? O que é afinal o tal Espírito Santo?
Minha vó veio com uma conversa mole que tentava me convencer que o Espírito Santo era a pomba que saíra da Arca de Noé.
– Mas Noé existiu, não é mesmo?
– Claro.
– Então a pomba também.
– Mas ela não é o Espírito santo.
– Então, quem é o Espírito Santo?
Aquele negócio de pomba-gira não tinha me convencido. Deus até podia ser pai e filho, mas uma pomba, não.
– Vô, o que é o Espírito Santo?
– O espírito santo não existe, é coisa de católico.
– Católico não existe?
Meus avós cansaram-se de responder aos meus questionamentos.
– Pai, católico acredita em Deus?
– Em outro deus.
– Mas Deus não é um só, onisciente, onipresente e onipotente?
– É.
– E por que os católicos não percebem o óbvio?
– Edla, você não andou lendo o novo testamento, andou?
– Eu pensei que era uma releitura mais moderna.
Enfim, ninguém conseguiu me explicar nada. Deram um nó na minha cabeça e eu comecei a achar que esse negócio de deus era, como eu supunha, o maior engodo.
(...) Deus não existia... (...) Não que eu me considere melhor que a idéia de deus, mas eu confiaria mais no taco da Emília – Marquesa de Rabicó.

III

Pronto, pela própria Edla, já tenho uma crise existencial adequada, principalmente para uma menina judia: desconfiar da existência de Deus. (Eu próprio, quando menino, estudei no vetusto Colégio Batista, onde, uma bondosa reitora americana, uma dona Benta de óculos de ouro, que parecia conversar diretamente com Deus – mas, antes de tudo, uma formidável contadora de histórias – ao narrar as passagens bíblicas do Antigo Testamento, conseguiu divorciar-me da figura de Deus, de um deus cruel, vingativo, que eliminava cidades, que lançava pragas pavorosas, que tinha predileção por apenas um povo, dentre mil sobre o planeta, pouco se dando que para isso precisasse arrebentar os filisteus, os egípcios e os brasileiros... Imagino que, para um cristão-de-mentira como eu, deixar de acreditar em Deus não deve ser tão terrível como seria para uma menina judia, que suporta um peso de tradição que remonta ao Éden, de um Deus presente, que aparece aos patriarcas como uma sarça ardente, um Deus que conversa, estipula mandamentos, elege um povo e, por assim dizer, torna-se quase palpável...)
Discreto leitor! Espero que, neste momento da narrativa, você se encontre tranqüilo e bem disposto, pois o assunto a seguir, apropriado para pessoas maduras, é delicado e sigiloso: tivesse eu juízo, manteria silêncio. No entanto...
Não é difícil imaginar por que diabos essa menina – Edla – de rosto semeado de sardas, dada a peripécias imaginárias, dona de uma aguçada curiosidade bisbilhoteira, teve acesso a um velho livro, primeiro farejado, depois espiado e, enfim, surrupiado do alto da estante de livros de seu avô. Tratava-se de um livro sobre a Cabala, que significa literalmente "tradição", a tradição das coisas divinas, a suma judaica. O instinto de Edla, sentindo que se encontrava diante de algo estranho e perturbador, fez seu coração martelar. Já ouvira falar alguma coisa a respeito, na sinagoga por certo, sobre o misticismo judaico e que a Cabala, durante séculos, fora vital para a compreensão que os judeus tinham de si próprios (de algum modo, quando o mundo lhes voltava a sua pior face). Os cabalistas, ao longo dos tempos, haviam tentado penetrar e mesmo descrever o mistério do mundo como um reflexo dos mistérios da vida divina.
Com os olhos inquietos de Edla, também eu lia aquilo: mentes e corações fervilhando e martelando, em idêntico compasso.
A palavra de Deus, líamos, é impregnada de significado infinito e abre caminho para uma infinita interioridade onde sempre novas camadas de significado são descobertas.
– Veja isso aqui – exclamou Edla – cada letra e palavra da Torah tem uma significação e força ocultas... Assim, as palavras de Deus a Abraão, Lech lecha, são tomadas não apenas no seu sentido literal, "Vai-te", ou seja, não são interpretadas como se referindo unicamente à ordem de Deus a Abraão, para ele ir pelo mundo afora, mas são lidas com literalidade mística significando "Vai-te a ti mesmo", isto é, "Encontra-te a ti próprio".
Aquilo atraía e fascinava os espíritos: o de Edla e o meu. A palavra, a força das palavras. Seu imenso poder de criação. Ai! Pensei nas minhas próprias, tão arredias ultimamente, escondendo-se no escuro, buscando esconderijos, desencontradas de mim. E vi Edla, como enlevada numa espécie de sonho, fixando-se naquele Lech lecha, mas com os olhos voltados para dentro de si mesma.
O texto absorvia...
– Tom... Existem aqui neste livro histórias interessantes... Sabe o que é um golem?
Tom sabia, ouvimos atentamente a sua explicação: o golem é a figura de um homem de barro ou lodo, que deve tomar vida ao ser pronunciado sobre ele o miraculoso Schemhamphoras – o nome de Deus. Sobre sua fronte está escrita a palavra emet, que significa verdade. Adão, tirado da terra, fora criado com golem, a quem o alento de Deus conferiu vida ou fala. Assim, alertou Tom, alguém que se dispõe a criar um golem, está competindo, de alguma maneira, com a criação de Adão por Deus...

Perigoso, proibido, arriscado...
Sim! Tudo isso. O que bastou para que Edla e eu aventurássemos em criar um golem...
Ousar para merecer.
O perspicaz leitor, que sabemos iniciado na crença mágica fundamental da força das palavras, facilmente poderá tomar a credibilidade nas mãos e, com olhos, ver Edla e Thom seguindo os ensinamentos do livro, tomando um pouco de terra virginal de montanha e a amassando com água corrente. Ah! O cheiro de terra, embalsamando o ar. O cheiro do Éden, o frescor das primícias... Trabalhamos com afinco e seriedade. Quase não discordamos sobre a figura a ser criada com o barro, Edla queria companhia (além do Tom) e, mãos à massa, esculpimos, com delicadeza e esmero, a figura de uma boneca desajeitada, na qual Edla, como a tia Nastácia, colocou as sobrancelhas muito acima dos olhos – a Marquesa de Rabicó.
Olhamos a boneca de barro, parecia uma bruxinha. Sorrimos.

– Pronto – disse Edla para Tom. – Agora é com você, seu doutor Cara-de-Coruja, trate de dar vida a essa Emília. E ministre-lhe também uma pílula falante, tenho muito a conversar com a pestinha...
A boneca de barro foi assim trancada dentro do guarda-roupa, junto com o Tom. Aquela seria uma longa noite...

IV

Eu dormitava entre sonhos sonhados com palavras, palavras antes perdidas em abismos sombrosos, em profundezas vazias, palavras que ecoavam roucas da escuridão do interior do guarda-roupa, palavras, como disse Proust, desancoradas a uma grande profundidade, palavras distantes que se aproximavam plenas de magia, erguendo-se numa roda, combinando-se, tangendo-se no silêncio da noite, girando, entrando em comunhão com o universo, redemoinhando estrelas, carregando-se de sagrado, do infinito cósmico, sopradas com toda a energia vivificante do universo em direção à vontade suprema de criar alguma coisa que ainda não existe... Criar...
Criar! Como se a vida emudecesse ao meu redor, deste silêncio veio o meu despertar. Depois de uma tempestuosa noite de ruídos, o dia amanheceu calmo e luminoso. Levantei-me num salto, fui imediatamente até o guarda-roupa, abri a porta, espiei. Nada. Tudo no lugar de sempre, as roupas, a sapateira, o espelho da porta... O espelho da porta! O golem? (Que merda de escritor sou eu, que não posso ser uma menina judia?) Não? O golem encontrava-se no espelho... Eu conseguira! Conseguira! Porque, a minha imagem – e lá estava ela bem nítida – era a de uma menina judia, Edla, um pouco mais velha, em verdade, a imagem de uma mulher, da Noel, a guerreira, autêntica – a mulher com a fronte assinalada.
Vai-te a ti mesmo... Encontra-te a ti próprio...
Aproximei-me do espelho: com letras de barro, pude ver o selo sagrado da Verdade – Emet – impresso sobre a minha testa.

Sérgio Mudado (Thomas), em agosto de 2000/novembro 2010

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