sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Dois médicos encantados pela arte de dois médicos. Ou: Veredas para Bom Despacho.


(Texto e poema baseados, respectivamente, da obra de Pedro Nava e de Guimarães Rosa.

O Riobaldo, naquele jeito dele, ensina o que é amigo. É bonito, de doer, aquilo. Amigo meu! O Antônio Angelo é. Quase basta. E eu o conheço? Ora, ninguém conhece o outro. É meu compadre. Nasceu no Bom Despacho, eu no Belo Horizonte. Temos, no comum, esse B, Bom e Belo: o B que desenha uma Bunda boa, cheia. Pacato, irônico, cardiologista, poeta, prosador. E amigo, já disse. Às vezes me tira de casa, me leva no jipe pro campo, me mostra belezas que não sei ver. Aí, médico não é mais, é só poeta, é só prosador. Vai se transformando no Vidigal Matos. Adiante, nem jipe. Monta no seu cavalo Feitiço, de dois andares, toma um galope perigoso, ri do meu medo, vai apontando aqui e acolá, os azuis cada vez mais puros das serras, as montanhas douradas, de prata, de verde esmeralda, as cintilações, a mata, Pode sentir o ar úmido? Poderia, se conseguisse respirar. Quando chegaremos ao aonde? Ele ri. Só mais um terço de légua. E seguimos cavalgando aquele solo ilustre. Vou te mostrar uma beleza antiga, do Nava, que você tanto gosta. Tenha um pouquinho de paciência. E prossegue, é agora, totalmente o outro, que eu também não conheço, mas é o Vidigal Matos, de conto premiado, cavalgando no cavalo Feitiço, e querendo me mostrar uma beleza. Lá, no aonde. Pronto, vamos parar um pouco aqui, pra ver o sol iluminar o rio São Francisco, é ali, nessa direção, aponta, e eu apenas vejo um mar de montanhas, umas depois das outras, depois das outras, depois das outras... Ficamos suspensos num silêncio, então miramos a maravilha do Nava, a bola do sol vai descendo no céu limpo. Quase tocando o horizonte, encostando seu fio na montanha. Mas às últimas claridades, um pouco para cá, acende-se de repente um longo fio serpente de fogo que coleia lampejo nem o tempo de se contar até quarenta e cinco para se encantar apagada e sumida no chão adentro da noite que cai. Tinta cor do sol poente entornada no chão, escorrendo. O prodígio, explica Vidigal, deve-se à batida obliqua dos raios poentes no espelho das águas do São Francisco que incandescem e são vistas lampejando nas léguas e léguas para lá da sua Bom Despacho...

Sérgio Mudado


MUNDOS GUIMARÃES

Belo Horizonte acorda chuvosa.
Da janela vejo ao longe semi-ocultas
encostas por onde casebres se espalham
de forma promíscua,
degeneração de matriz cancerosa.

Sufoca-me a metrópole.
Na estante alcanço Guimarães Rosa
onde encontrar cheiros e climas:
comunhão possível com raízes interiores,
confluência de riachos, matas e trilhas.

...córregos fugindo brenhas adentro, buritizais,
patuléia miúda (muito trabalho e rala existência),
brancas noites de plenilúnio, reboliço de brisas flauteando no bambuzal,
terras altas além do Urucúia, taperas em vilarejos desolados,
garrixas cochichando no beiral do telhado,
manhã invernosa, dois cabras sentados à porta tiritando de febre e ciúmes
(“Esta noite sonhei com ela, bonita como no dia do casamento” – diz um),
quintais onde a erva daninha se espalha, tiriricas,
o manchão laranja do cipó-de-são-joão no barranco
que nem tinta cor do sol poente entornada no chão,
vento viajeiro ondulando a extensão do capim gordura,
cercas de pedras, bois no pasto, ecos de tiros nos socavões;
meio-dia: um esmorecimento, um não-querer nada,
árvores ressequidas erguendo raquíticos galhos
contra o céu de azul coruscante – ali vai um cão magricela,
urubús em re-círculos bailarinos no anil distante -
zunir de varejeiras, azuis brilhozinhos azuis de asinhas,
rios sem margem, barco se esquivando no breu da noite;
moça na janela, boiada passando
(cavaleiro olha-olhando espichado,
sonhando com o alvo véu de filó, rendas, camisa de cassa branca,
e, ao depois, filhos, gadinho, galinhas no terreiro,
horta, pomar e um cachorro fiel anunciando forasteiros).

No meio da rua o redemoinho ,
e dentro dele - ou vigindo nos crespos do homem - o sem nome.
No Pirapora, Diadorim não se desveste,
atento aos despistes de Riobaldo...
Corguinho deitado, vereda sem nome, buritis em fila,
Riobaldo oferece mimo, pedra safira de Arassuaí,
que de coração Diadorim agradece –
esperar até acerto de contas com Joca Ramiro;
Riobaldo conta favas e refavas
e pensa na moça clara da Fazenda Santa Catarina –
(e a outra, para todos formosa, de saia cor-de-limão,
florzinha amarela do chão, prostitutriz, Nhorinhá).

Por algum tempo, Belo Horizonte é sombra esquecida,
mas que forja matreiramente suas ruindades
ruminando segundas-feiras desenxabidas.
Eu divirjo – resistencioso às sovinices do tempo –
e me esquivo de retornar à janela,
na desvontade de presenciar o mundo.

Antonio Ângelo de Oliveira

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