sexta-feira, 19 de novembro de 2010

PANIFICADORES EXTRAORDINÁRIOS

Peça em um ato

Cenário: interior de uma padaria

(Um aspirante a padeiro recebe, de Mestres-Cucas, ensinamentos e os segredos do preparo do melhor pão.)

RILKE: Pois bem, jovem padeiro! Usando da licença que me deu de aconselhá-lo, peço-lhe que deixe tudo isso. E use, nesta fase, suas próprias mãos. O senhor está olhando para fora, e é justamente o que menos deveria fazer neste momento. Em verdade, nesta concepção culinária ninguém o pode aconselhar ou ajudar – ninguém. Não há senão um caminho. Procure entrar em si mesmo. Investigue o motivo que lhe ordena fazer esse pão. Examine se a vontade de fabricá-lo estende suas raízes pelos recantos mais profundos e famintos de sua alma. Confesse a si mesmo: morreria se lhe fosse vedado produzir esse pão? Sou mesmo forçado a fazê-lo? Escave dentro de si uma resposta profunda. Se for afirmativa, se puder contestar àquela pergunta severa por um forte e simples “sou”, então obre e dê existência ao seu pão de acordo com essa necessidade.

FLAUBERT: Trabalhe, trabalhe, misture o trigo às gemas frescas o quanto você puder, o quanto sua massa possa lhe arrebatar. Use açúcar com parcimônia, a manteiga sem ranço, uma pitada de sal e farinha de qualidade para polvilhar. Trabalhe, trabalhe. O cansaço da existência não nos pesa mais nos braços quando produzimos o pão verdadeiro, o que pode saciar.

SCHOPENHAUER: A tarefa do bom panificador não é fabricar grandes pães, mas tornar deliciosos os pequenos.

RILKE: Se acontecer do trigo vir misturado ao joio, e lhe parecer pobre, não o acuse. Acuse a si mesmo, diga consigo que não é bastante bom padeiro para extrair as riquezas do grão sagrado.

FLAUBERT: Nada é mais seu do que o pão que lhe pertence enquanto é feito e a mais ninguém é dado possuir o segredo de produzir esse milagre. A massa no ponto perfeito: eis a verdadeira verdade. Penetra nos seus ingredientes... Fica neles, explore-os...

PROUST: Explorar? Não apenas explorar e modelar a massa com os dedos: assá-la também requer tino e paciência. E ao observar o interior do forno, mirar como quem se encontra diante de qualquer coisa que ainda não existe completamente e a que só um verdadeiro cuca pode dar realidade e fazer entrar em sua luz...

FLAUBERT: Em sua luz e depois em nossos olhos, bocas e, enfim, em todo ser.



TODOS:

O mister de fabricar o pão sagrado
Exige o interior mais íntimo,
Um bastidor aparentemente insondável,
Onde a contemplação e manuseio do pequenino,
Do aparentemente insignificante,
Busca a grandeza, o sabor e o significado.

(Cai o pano. Escuridão e silêncio. No ar, como um eco suspenso, pode-se ouvir a voz de Proust: Os pães verdadeiros se geram não na luz das vitrines e prateleiras, mas no silêncio e no calor do forno... Silêncio quebrado pelas portas da padaria se abrindo.)

VOZ: Bom apetite, estimados ouvintes.

2 comentários:

  1. Entra uma mosca, rodeia o pão, e pergunta: onde entra o fermento? Proust, Rilke, Flaubert, Schopenhauer, padeiros e padeiras explicam, o fermento é você.

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  2. Chegando já encontrando essa delícia aí de cima, nãaaaaaaaaaao, mais pra cima! Dura, porque pão macio não dura, só me resta o recurso da torradeira e assistir o teatro do pão passado.
    Mas sempre com a qualidade impecável do Mestre

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