segunda-feira, 22 de novembro de 2010

JANELA

(Pequeno conto publicado no O Caixote)
O trânsito, naquele horário, até que não estava ruim na Avenida Afonso Pena. Duas horas depois, podia-se prever, aquilo estaria um inferno de carros, cansaços e rancores, misturado ao corre-corre habitual do poviléu, de vida sempre apressada. Bem, lá estava eu, liberado do dia, indo para casa mais cedo, uma folga justa e merecida. Da janela do carro, tinha observado que A viúva alegre encontrava-se em cartaz no Palácio das Artes, e acendi um cigarro que, em absoluto, não precisava fumar naquele momento, creio que o fiz motivado pelo cartaz pomposo do teatro. O cigarro, porém, tornou-se melhor quando o rádio do carro começou a tocar Dust in the wind, do grupo Kansas, música que adoro. Essas coisas: imagens, som, prazer, e lá vou eu embora, dia ganho e... Basta.
Pego a pista esquerda, mais solta... Que coisa, tudo dando certo, outra tragada e, me diz a música linda: Tudo que eles são é poeira ao vento, all they are is dust in the wind... O sinal luminoso torna-se amarelo, num cruzamento. Já estou mesmo devagar, apenas vou roçando o freio, de leve... Paro.
Então vejo aquilo. No passeio central, um corpo estendido, uma mulher, presumo, vestida com uma blusa amarela, uma calça azul, deitada de lado, um dos braços esticados além da cabeça, completamente imóvel, atrapalhando os transeuntes. Teria desmaiado? Estaria morta? O povão, aos borbotões, desvia-se do corpo, passa apressado. Nenhum guarda, merda, eles que sempre dão sopa por aí, para cumprir a sanha de lascar multas a torto e direito. E a mulher, lá, deitada, quieta. Sabe? Existe até certa graça naquele repouso dela, uma beleza em sua solidão. Morta? Quem queria saber? Aquilo não é lugar de dormir. Bêbada, talvez, a miserável. Digo apenas que ela está lá, não estou imaginando isso, como também não estou imaginando aquele povo todo pouco se lixando para aquilo: povo pé-de-vento, pó ao vento. Ao sinal verde, meu carro arranca-se dali, deixa para trás a mulher deitada em sua solidão amarela, no canteiro central da avenida, com o povo, em sua pressa, se desviando dela, a vida é mesmo muito ocupada, isto é bem certo, merda, por que nessas horas não se avista uma mísera farda?
Não fiquei, nem pensem nisso, indignado ou revoltado, sem essa de ficar culpando o governo por todas as mazelas, não, que nada, disso desisti há muito. Estamos todos limpos, eu, minha consciência, todos nós... O carro rodando, a lembrança amarela e deitada ficando para trás, sua visão diminuindo no retrovisor, a música terminando... Tudo é poeira no vento, everything is dust in the wind...
Havia, porém, uma coisa, apenas uma, e incomodando forte: um vazio absurdo, subitamente, instalou-se em meu interior, e na ânsia de preencher-se, buscava arrancar o meu ser de mim mesmo, atirando-o fora, tal e qual minha mão fazia com o toco do cigarro que acabara de fumar.

2 comentários:

  1. Se alguém tiver curiosidade, visite O Caixote
    http://www.ocaixote.com.br/

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  2. ll we are dust in the wind… En relation à « ..souviens-toi que tu es né poussière et que tu redeviendras poussière.. », j’imagine ! Qui était cette femme vêtue de jaune allongée sur l’avenue ? Était-ce réellement une femme ou bien était-ce la matérialisation, d’un remord ? Au cours de notre existence, nous passons souvent à côté de la réalité, pour des raisons subjectives, qui font que notre vie, va à contre courant de notre conscience ? Peut-être justement, parce que nous ne sommes qu’une pincée de poussière, poussée par le vent.
    All we are dust in the wind… Em relação em “..do pó vieste e ao pó retornarás..”, eu imagino! Quem foi esta mulher vestida com uma blusa amarelo alongada estendida na avenida? Era realmente uma mulher ou apenas a materializaçào de um remorso? Durante nossa vida, estamos freqüentemente distantes da realidade, por razões subjetivas, assim nossa vida, vai contra a corrente de nossa consciência? Talvez exatamente, porque nós somos só uma pitada de pó, empurrado pelo vento

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