domingo, 5 de junho de 2011

ENCANTAMENTO

"Desse lugar não há caminho que se venha.
E, no entanto, eu a vejo ali,
junto às folhas secas do jardim,
há tanto tempo abandonado.

Mas vejo uma mulher imóvel,
como se dentro de um quarto,
sendo a moldura o canteiro,
ou meu pobre olhar amargurado.

Os pés estão quase suspensos,
e o corpo se fez de fino pólen.
Ainda posso enxergar a face,
que, apesar de tudo, me sorri.

Vinda de onde não se vem,
permanece sentada no jardim.
Tenho receio de assustá-la,
com qualquer ruído ou movimento.

Não posso, sequer, me aproximar.
Devo olhá-la de longe, cuidadoso,
sem dizer uma única só palavra,
sempre calado e sempre distante.

E penso quando irá embora,
se poderá voltar outro dia,
desse ausência de muitos anos,
e dessa vasta e lenta agonia."

O Tratador de canários, de Gilberto Nable

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Juca Peralta encontra o Poeta Silas

Pequena Resenha Crítica





Um Romance Fora de Série:

“Os Negócios Extraordinários de um Certo Juca Peralta”

Do Literato Sérgio Mudado



Que a literatura moderna é perigosa

é algo inconteste. A única resposta

digna da crítica que ela suscita, é que

essa literatura venenosa exige um novo

tipo de leitor: um leitor que ‘responda’



Paul Ricouer, Pensador Francês



-Eu sou macaco de auditório do médico-literato Sérgio Mudado, desde que me deliciei com o livraço Vassalu, que tive o prazer de resenhar e que, acho, vertida para o inglês, devidamente encaminhado para um agente literário dos Estados Unidos, daria um filme épico muito melhor do que Tróia e Gladiador. Estupenda obra prima.

-Por isso, quando recebi “Juca Peralta”, romance, custei a me preparar para a leitura que teria que ser especial, prazerosa e que, certamente, mexeria com meus botões sensoriais. Vivendo época pessoal difícil, de amarga caminhadura, finalmente entrei de vereda na leitura que prometia, aqui e ali parando, indo e vindo, até que finalmente tomei pé definitivo e dali em diante, escolado, salve-se-quem-puder, caí no fluxo narrativo e babei. Baba baby, diria a canção. Pois foi por aí...

-A narrativa de Sérgio Mudado cativa, seduz, empolga, pega o ledor feroz pela mão, leva-o para passear no parque temático das contações, uma linguagem ao mesmo tempo em que cult e pop, lembrando aqueles historiadores e cronistas mineiros que deitam falatório e seduzem, aplainam, e, levados da breca, fazem o leitor seduzido curtir, gostar, “se rir” (como se diz lá em Itararé), e outros prosopopéias de mais um clássico da literatura brasileira -- que o Sérgio Mudado é mesmo o número um atualmente. Só senti o mesmo prazer quando li o Baudolino, do Umberto Eco, Sergio Mudado no mesmo patamar, no mesmo nível.

-Contações com esmero, dados filosóficos e místico-conceituais, passando pela história de Minas e suas semeaduras gerais, do Brasil de muito ouro e pouco pão, do mundo que Brecht rotulou como em tempos tenebrosos, como se o autor inventasse uma toda própria memória recorrente de idas e vi(n)das, alguns dados místicos, e, toma-lá-da-cá, o bendito boêmico personagem principal Juca Peralta que pinta e borda alardeios e mesmo insanidades, e bota suspensório em cascavel, aprontando das suas peraltices, entre prazeiranças e contentezas de um livraço. Muito prazer de ler, acreditem. Sérgio Mudado narra com uma baita maestria, que dá o que sentir, curtir, florir-se. O próprio pensador francês Paul Ricouer ainda reafirma, a propósito do livro e de seu prumo literário: “Não temos a menor idéia do que seria uma cultura em que não se soubesse mais o que significa narrar.”

-Sérgio Mudado dá show. Romance pontuado com causos do arco da velha – o escritor um grande mentiroso? – e o leitor entra de mala e cuia e mente lavada, e vai sendo bombardeado pelo implícito, explicito, internarrativas, ora sob um enfoque, ora sobre outro, na garupa do historial o leitor é conduzido e monta a galope o romance-quase-novela todo. Será o impossível? Pois, acredite se quiser, o livro de mais de 400 páginas cumpre a missão maravilhosamente, Sérgio Mudado no auge, esmerilhando mitos, lendas, fofocas, mentiras e, claro, o conhecido e magnífico fluxo narrativo que é como se o doutor médico, também aí incluído importante (com prisma todo próprio) também uma persona en-passant no livro, e ainda assim por isso mesmo nos trouxesse mentes, corações, sentimentos, perdas e drenos, sob a sua ótica-criação de primeira grandeza, em belos horizontes, trilhas, errações, contrações e bravezas. Bravo.

E em troca de e-mail com o literato Sérgio Mudado, dele tirei dados, pondo pimenta-camari na minha leção: “...No Juca Peralta você chegará a um capítulo no qual Juca e Noel Rosa passeiam pela noite da cidade em 1936, e a atmosfera é de pura magia. O livro, admito, não é de leitura fácil e contém alguns segredos que podem ser desvendados ou não. Noge é o inverso de Egon, e é justamente um alter-ego do grande memorialista (deixarei a cargo do leitor fazer essa descoberta...). Ele se torna o senhor do tempo, podendo ir e vir, passado e futuro. Cleópatra é Ísis, deusa maior do panteão egípcio. O rádio Matador existiu como foi descrito. A Leitora, que acompanha quem narra, também existiu (e existe) de verdade, acompanhou a feitura do romance. Existe assim uma espécie de realismo mágico. O livro começa em janeiro de 1939 e termina em setembro, quando inicia-se o II conflito mundial. Nele entram, Pedro Nava, Guimarães Rosa, Thomas Mann, Joyce, Proust, Khayyam e outros. O universo do romance é complexo, mas não indecifrável.... Bem, eu me diverti muito, escrevendo-o. Minha mulher, que não é leitora 'profissional' foi colhida pelo livro, o que me tranqüilizou... (...)”

-Wesley Duke Lee disse que "O que realmente me interessa é a qualidade da ilusão." No caso de Sérgio Mudado ainda é a qualidade excepcional da imaginação, sentição, “dom de iludir”, cultura histórica, conhecimento dos descaminhos e configurações interioranas da matreira Minas, dando voz a figurinhas carimbadas de sertões, ruas, bares, quintais e zonas das mulheres de difíceis vidas fáceis, altares, quebradas, monturos, escombros e purezas, como no caso do viajante companheiro que é o Fábio, um aprendiz de Juca em mundos e cafundós.

-Entre magias, feitiços, mágicas, zonas de meretrício, cabarés, bares, crônicas, derramas, poemas, muita MPB e Noel Rosa cifrando todo o livro, mais poemas, insinuações paraletrais de quadrinhos, cantilenas, dados folclóricos, mineirices e pujanças, Juca Peralta pelo seu criador Sérgio Mudado vai indicando dados dicas de rincões e suas tipicidades, curas, remédios, purgações, bacilos, pachorras, intermediações, matadores de aluguel, bares, comidas e comilanças, mais acidentes de percurso de amor que é cego e carecido, prostitutas, amantes, perigos, acidentes; um mosaico interiorano dessa Minas que muito bem representa a nossa brasilidade mestiça, entre imigrantes, lugares aonde o Judas perdeu o All-star, e vai por aí o bolero, as acontecências, bravatas e impertinências de percurso, feito um bem-bolado daquele que, certamente, é sim um dos maiores escritores atuais de Minas Gerais, um médico romancista. Já pensou?

-Sobre o maravilhoso livro do cavaleiro medieval de Sérgio Mudado eu já tinha escrito (fragmento): “A história é uma pedra na consciência da civilização. Van Tieghem diz que a categoria social e a importância do escritor crescem em forma notória. Deve ser isso. Os privilégios dos caminhos da literatura contra os sandeus do absurdo que ainda impunemente viçam e mandam. Milton Hatoum diz que o escritor passa a vida inteira tentando dizer uma verdade profunda através de uma invenção literária. Sergio Mudado acertou e brilha na sua obra. Aliás, o próprio dia de brilhar (ilha de edição?) vive dentro dele, espelha ele, está no romance dele, Vassalo. Carne e coragem. Idade Média destilada como sangria letral. Por fim, como muito bem observou a amiga Maria Ilsen na apresentação do livro no site da Livraria Cultura, só a consciência da finitude explicaria a busca da continuidade muito além da vida, além dos sentidos. Alguns se tornam vassalos desta busca. Outros, plantam árvores, criam filhos, deixam obras importantes como Vassallu- A Saga de um Cavaleiro Medieval (de Sérgio Mudado)”.

-Pois “O Negócios Extraordinários de um Certo Juca Peralta” é desde logo um clássico. Já no prefácio Benedito Nunes diz do realismo grotesco de Juca Peralta, e comenta: “Nas conversas dos personagens(...) intercalam-se o tempo todo versos das modinhas de Noel Rosa, também feito personagem. O próprio romance é um híbrido conjunto fragmentado, que persegue e é perseguido pelo Tempo e suas loucuras. Em contraponto com as peripécias de Juca Peralta, estão as idas e vindas da própria narrativa, que se divide em três partes dentro de um período datado – a partir de janeiro de 1939, ano fatídico, já instalado o Estado Novo por Getulio Vargas. Não esqueçamos (...) que essas idas e vindas é o próprio Tempo em seu fluir invisível, que se elabora como matéria prima da própria narrativa, o Tempo vertiginoso, que tem medida desigual(...)”

-A Orelha de Juca Peralta já alerta a proposta: uma parceria – "Semeei-te em mim" – diz, quem narra a quem lê, selando um pacto entre o leitor/narrador/autor, “perigo, musica e perfume(...) a atmosfera do texto”. E explicita ainda na orelha: “O leitor que ousar acompanhar quem narra, terá, se sobreviver aos perigos que o espreitarão ao longo da jornada, a oportunidade única de sair de si mesmo e contemplar outro universo(...). Sentirá no espírito, ao mergulhar neste mundo fantástico mundo de palavras alinhadas, imenso deleite. E, se for arguto, poderá reconhecer nesses resquícios de literatura uma declaração de amor às palavras e aos gênios que a transformam: Nava, Rosa, Mann, Proust, Joyce... (...) Romance saboroso, regido pelo antigo deus que, ainda hoje, ilumina a existência dos amantes da arte, dos leitores capazes de ouvir no vento de estrelas a sinfonia cósmica do Senhor do tempo, da Magia e da palavra”

-O vendedor-Inspetor Juca Peralta, caixeiro-viajante, o aspirante a vendedor Fábio, o rádio Matador feito uma metáfora que se comunica, fere, brinca e se expande literalmente, mais expressões, doenças, filosofias, mitologias, fantasmas, tudo impregnando as facetas do livro que são várias, vários prismas, vários espaços cênicos, tudo um verdadeiro vislumbre para quem adora literatura de alta qualidade criadora e narrativa impecável, entre tantos personagens que vão, voltam, somam, dramatizam, ironizam, recheiam o livro, com viagens de trens, estações e paragens, baldeações (inclusive trans-narrativas), citações bíblicas, ou outras em latim, francês, um verdadeiro destrinche das facetas dos personagens, técnicas de narrar e mesmo confeito criacional do autor, fora de série mesmo. Não é qualquer um que pode criar uma obra assim. Não é qualquer dia que uma jóia preciosa assim nos cai na graça ledora impertinente de se deixar encantar. Mil maravilhas.

-Tuberculose, loucuras? Juca Peralta é o “jogo de amarelinhas" (Fidalgas...) de Sérgio Mudado? "Cada romance tem de ser um objeto único. O enredo ordena a sua forma. A estrutura do relato segue a intensidade da narração.", diz Juan José Saer. Por fim, falando sério, deixo que o leitor procure o seu exemplar do belo livro, corra atrás, vá ser também Juca e Peralta atrás de seu comboio, lugar-tenente de ilusões, culturas e artes lítero-culturais fantásticas, trem noturno ou não. Porque, de uma forma ou de outra, assim na terra como no céu, loucos ou saradinhos – de perto ninguém é normal, cantou Caetano Veloso – somos todos filhos de estações de trens; afinal, já no passado não cantou Gilberto Gil, sobre o benfazejo Expresso 2222 da Central do Brasil?



-Sim, há um trem para as estrelas... E em Juca Peralta a vida é um comboio engatando acontenças, e a visão pode ser só um ponto de partida ou de chegada. Deste e de outro mundo.



-0-







Silas Correa Leite - Santa Itararé das Artes/Samparaguai, Fevereiro 2011

Poeta, Ficcionista, Teórico de Educação, Conselheiro em Direitos Humanos, Jornalista Comunitário, Premio Lygia Fagundes Telles Para Professor Escritor

Pós-Graduado em Literatura na Comunicação (ECA/USP)
Autor de Porta-Lapsos, Poemas, e Campo de Trigo Com Corvos, Contos premiados, finalista do Prêmio Telecom, Portugal, à venda no site www.livrariacultura.com.br

E-mail: poesilas@terra.com.br

Blogue premiado do UOL 2009/2010: www.portas-lapsos.zip.net

Site de sua aldeia natal: www.artistasdeitarare.blogspot.com/

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Tagore: o giz da tirania e o caminho para a criação


Por acaso, já ouviram falar no círculo de giz do poeta indiano Rabindranath Tagore, o primeiro não-europeu a conquistar, em 1913, o Nobel de Literatura?
Vou contar para os que não sabem do que se trata.
O pequeno Rabindranath foi cuidado, na maior parte do tempo, por criados, uma vez que sua mãe morreu quando ele tinha poucos anos de vida e seu pai viajava muito.
Ora, para simplificar o trabalho de tomar conta de Tagore, o criado mandrião riscava em torno do menino um círculo de giz, ameaçando-o com os maiores perigos se ele ousasse transpor o risco. Intimidado e obediente, o garoto permanecia ali por horas sonhando e vendo o inacessível Lá Fora, que tinha cheiros e sons, rasgos de verde e água, vislumbres percebidos além da casa.
Riscos de giz da tirania, assim Tagore se referiu ao círculo que o prendia... No entanto, os riscos, o impedindo de sair, acabaram por impeli-lo, numa tenra idade de sua vida, a caminhar para dentro. E tendo percorrido este trajeto interior, sentiu-se um dia livre do fardo amargo do eu para então perceber que o mundo visto por observador sem amarras não se constituía de uma trivialidade aparente e sim de um jorro de beleza e luz para os olhos, para a alma...

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Molly Bloom: Sim à vida e ao amor

"...e o mar o mar carmesim às vezes como fogo e os gloriosos crepúsculos e as figuras nos jardins da Alameda sim e todas as ruazinhas estranhas e as casas rosa e azuis e amarelas e os jardins-de-rosas e os jasmins e os gerânios e cactos e Gibraltar quando eu era uma mocinha onde eu era uma Flor da montanha sim quando eu pus uma rosa no meu cabelo como as moças andaluzas usavam ou será que eu vou usar uma vermelha sim e como ele me beijou debaixo do muro mouresco e eu pensei bem tanto faz ele como um outro e então eu lhe pedi com meus olhos que pedisse novamente sim e então ele me pediu se eu queria sim dizer sim minha flor da montanha e primeiro eu pus meus braços à sua volta sim e o arrastei para baixo sobre mim para que ele pudesse sentir meus seios todos perfume sim e seu coração disparou como louco e sim eu disse sim eu quero Sim.
(Ulisses, de James Joyce)

F. M. DOSTOIÉVSKI

Passar por nós... E ao passar nos perdoar a nossa felicidade...

(Ouçam-na em voz baixa. Se a alma puder escutar a música emanada destas palavras, o ser permanecerá virtuoso e experimentará a mais extraordinária grandeza. Simples assim: perdoar a felicidade dos outros.)

sábado, 5 de fevereiro de 2011

O escritor e o Diabo

O título acima refere-se a uma novela que acabo de escrever, usando material antigo e novo, abordando minha obsessão pela obra fictícia e pelos acontecimentos reais na vida do escritor alemão Thomas Mann e de sua família. Uma anatomia sobre do suicídio de Klaus Mann (Eissi) foi construída sob forma de peça teatral, envolvendo o pai famoso: vida, comportamento e obra. Tempo, transitoriedade, morte ( quanta repetição) e uma participação sobrenatural ( a do velho demônio) tentam, de forma poética, explicar o processo criativo - principalmente o literário. A gênese do Vassallu, a saga de um cavaleiro medieval narrada pelo Diabo, é, de algum modo, contada. Pessoalmente gostei muito do trabalho e experimentei um certo alívio em concluí-lo. Encontra-se, esta novela, nas mãos de dois editores. Não havendo proposta de publicação, prometo postar aqui o trabalho, na íntegra. Thomas Mann disse que de algum modo é tranquilizante acreditar que, depois da morte, a gente se torna espuma do mar...
Ora, por que não permitir que mais pessoas tenham acesso e possam provar um pouquinho do sal dessa espuma que, muito em breve, ficará imperceptível na vastidão oceânica?

domingo, 23 de janeiro de 2011

Sobre prostitutas e anjos



Perdi o meu pai quando tinha 17 anos de idade. Ele já havia sofrido um infarto cardíaco, um ano antes. Numa madrugada foi despertado com intensa dor no peito. Corremos com ele para uma clínica cardiológica. Não havia CTIs naquela época. O plantonista, sonolento, colocou-o no oxigênio, aplicou-lhe umas injeções, a dor aplacou e o meu velho sentiu alguma melhora. O médico desapareceu do mapa. Eu disse para minha mãe que ela poderia ir embora. Fiquei sozinho com o meu pai, ao seu lado, naquela sala da clínica. De repente o desespero, a falta de ar intensa, ele borbulhou e morreu afogado. Depois soube: edema agudo de pulmão, por falência do coração infartado. Ele tinha apenas 54 anos. Eu, já disse: 17. A imagem de sua agonia, do desespero e da morte, jamais me abandonou. Coisas que se agarram aos 17, se agarram para sempre.
E iria fazer vestibular naquele ano. Para medicina. Nunca havia pensado em outra possibilidade. Apenas em fazer medicina. Desde garoto.
Passei no vestibular daquele ano, apesar de todas as dificuldades e do pesar infinito. Iniciei a faculdade assim: mergulhado na tristeza, no desamparo, na solidão, na insegurança e experimentando, a pior coisa do mundo: o ressentimento. Sentia inveja, quase mórbida, dos colegas que tinham os seus pais vivos. E orgulhosos de vê-los como acadêmicos de medicina.
Quer ver um retrato meu, da época? Pintei-o há pouco tempo, quando a editora de O Caixote me pediu para escrever sobre “prostitutas”. Leia:

Meu doutorzinho bebeu um bocado, hem? Não tem importância, vamos subir, eu ajudo... Ah, gosto quando você vem, meu doutorzinho...

(A tela branca desafia: escreva sobre putas... Sobre uma puta... Suspendo a respiração, fecho os olhos, o mergulho poderá ser doloroso).

Aposto que não comeu nadinha, não é mesmo? Você está magrinho... Gastou tudo só com bebida? Tem que comer também, meu doutorzinho. Que escada difícil, hem? Pronto, vamos entrar, a M... vai cuidar de você...

Uma hora antes havia saído do prédio do Diretório Acadêmico da Escola. Merda de hora dançante, isto é só pra quem tem dinheiro e carro, merda de domingo, domingo à noite é sempre merda mesmo, a vida da gente – toda ela – é uma merda de domingo à noite... E não consigo entender... A turma aparenta gostar disso... Parecem alegres, todos eles e aproveitando... Mas aproveitando o quê? Música ruim, sempre as mesmas caras, o mesmo papo-furado... Hoje contaram as bichas da turma que chegavam no DA. Merda... Cuba libre de merda, estou tonto... e duro... Gastei toda a grana? Não, deixe-me conferir... Guardei os últimos cinco mangos, tenho certeza... Onde enfiei a merda do dinheiro?...

Deixa eu ajudar, deita aí, eu puxo as calças... Nada de apagar agora, viu?... Tem que comer, meu doutorzinho, não pode ficar apenas bebendo, não, aposto que está com fome, né? Ih, ih, essas cuecas novas parecem calcinhas...

Cinco mangos... Vou a pé pra casa... Quase uma hora da madruga... Os merdas, riquinhos, todos de carro, têm pai que banca... Têm pai... Enquanto que eu... Eu aqui no dedão... Por que não saí mais cedo daquela merda?

Ocê tem aula amanhã cedo, né? Vai ficar cansado, doutorzinho... Venha cá... O estômago tá ruim? Ah, não vá me aprontar sujeira, por que será que sempre vem aqui neste estado? Vem cá, vem cá, doutorzinho, tenho uma coisa gostosa aqui pra você... deixa te ajudar a entrar em mim... a te abrigar...

Este parque escuro me dá medo, diacho, eu não deveria ter virado aquele último cuba libre... Foda-se o mundo, foda-se o medo... Contavam os viados, que merda. Até o W... Porra, daquele eu não sabia, viado?... Sempre rodeado de meninas, o karmanguia, e viado? Cinco mangos... O que a M... cobra, ela deve estar lá, na Inhaúma... Vou pra zona, tenho que ir, merda...

Você gozou muito rápido, doutorzinho, tá cansado, né? Tá apagando, coitadinho...

Sim, lá está ela... Parece que sempre está aqui... Ela é legal, não dá medo, não passa doença... Pronto, já sorriu... Deixa eu conferir os cinco mangos no bolso, diacho, vou pagar adiantado ou acabo me esquecendo, foda-se pro dinheiro, pro DA, pra turma, pra este domingo de merda, pra vida...

Vou dar uma saidinha, volto logo, fique descansando, meu doutorzinho...

Que lugar mais sórdido, merda. O que estou fazendo aqui? Como uma criatura consegue viver sempre no escuro? Que espécie de vida ela leva? Diacho, conto tudo pra ela, e dela nada sei... Foda-se, quem se importa? Puta é puta, ela parece gostar disso, gosto que ela me acaricie os cabelos, que não me beije... Ela é apertadinha, como consegue? Será que a xoxota chupeta é, na verdade, a mão dela? E eu nem percebo? Foda-se, foda-se, ahahah, o pessoal contando os viados... Que contem viados, que se danem contando viados... Onde será que ela foi?...

Ei, acorde, doutorzinho, olha o que eu lhe trouxe... Vamos, acorde, coma enquanto está quentinho...

Sanduíche gostoso, nunca comi um igual, nossa, eu estava mesmo com uma fome danada. De pernil, quentinho... Onde será que ela arrumou isso? Num desses botecos imundos da zona, de onde mais, seu besta? Você está envenenado, seu doutorzinho de merda, definitivamente morto... Mas que delícia, que delícia...

Melhor ocê dormir mais um pouco, eu te acordo cedo, amanhã tem aula, né? Gosto de estudantes, gosto de você, muito... Mas tem que comer, viu? O meu doutorzinho tá muito magrinho... Agora, pode dormir... Não se preocupe com nada...

O Sol brilha a manhã da segunda-feira, subo a rua, a Inhaúma, passos rápidos, mil fantasmas dissipando-se na ressaca, minha nossa, tenho que chegar em casa, tomar um banho, aula às oito, estou ferrado, que loucura, que loucura, dormi na zona... Ah, até sonhei, sonhei com sanduíche... De pernil... Não faço mais isso, nunca mais volto aqui, merda, o que é isso no meu bolso? O dinheiro! Merda, ela não cobrou, não cobrou... Ai, que se dane... Ela que se dane!