domingo, 23 de janeiro de 2011

Sobre prostitutas e anjos



Perdi o meu pai quando tinha 17 anos de idade. Ele já havia sofrido um infarto cardíaco, um ano antes. Numa madrugada foi despertado com intensa dor no peito. Corremos com ele para uma clínica cardiológica. Não havia CTIs naquela época. O plantonista, sonolento, colocou-o no oxigênio, aplicou-lhe umas injeções, a dor aplacou e o meu velho sentiu alguma melhora. O médico desapareceu do mapa. Eu disse para minha mãe que ela poderia ir embora. Fiquei sozinho com o meu pai, ao seu lado, naquela sala da clínica. De repente o desespero, a falta de ar intensa, ele borbulhou e morreu afogado. Depois soube: edema agudo de pulmão, por falência do coração infartado. Ele tinha apenas 54 anos. Eu, já disse: 17. A imagem de sua agonia, do desespero e da morte, jamais me abandonou. Coisas que se agarram aos 17, se agarram para sempre.
E iria fazer vestibular naquele ano. Para medicina. Nunca havia pensado em outra possibilidade. Apenas em fazer medicina. Desde garoto.
Passei no vestibular daquele ano, apesar de todas as dificuldades e do pesar infinito. Iniciei a faculdade assim: mergulhado na tristeza, no desamparo, na solidão, na insegurança e experimentando, a pior coisa do mundo: o ressentimento. Sentia inveja, quase mórbida, dos colegas que tinham os seus pais vivos. E orgulhosos de vê-los como acadêmicos de medicina.
Quer ver um retrato meu, da época? Pintei-o há pouco tempo, quando a editora de O Caixote me pediu para escrever sobre “prostitutas”. Leia:

Meu doutorzinho bebeu um bocado, hem? Não tem importância, vamos subir, eu ajudo... Ah, gosto quando você vem, meu doutorzinho...

(A tela branca desafia: escreva sobre putas... Sobre uma puta... Suspendo a respiração, fecho os olhos, o mergulho poderá ser doloroso).

Aposto que não comeu nadinha, não é mesmo? Você está magrinho... Gastou tudo só com bebida? Tem que comer também, meu doutorzinho. Que escada difícil, hem? Pronto, vamos entrar, a M... vai cuidar de você...

Uma hora antes havia saído do prédio do Diretório Acadêmico da Escola. Merda de hora dançante, isto é só pra quem tem dinheiro e carro, merda de domingo, domingo à noite é sempre merda mesmo, a vida da gente – toda ela – é uma merda de domingo à noite... E não consigo entender... A turma aparenta gostar disso... Parecem alegres, todos eles e aproveitando... Mas aproveitando o quê? Música ruim, sempre as mesmas caras, o mesmo papo-furado... Hoje contaram as bichas da turma que chegavam no DA. Merda... Cuba libre de merda, estou tonto... e duro... Gastei toda a grana? Não, deixe-me conferir... Guardei os últimos cinco mangos, tenho certeza... Onde enfiei a merda do dinheiro?...

Deixa eu ajudar, deita aí, eu puxo as calças... Nada de apagar agora, viu?... Tem que comer, meu doutorzinho, não pode ficar apenas bebendo, não, aposto que está com fome, né? Ih, ih, essas cuecas novas parecem calcinhas...

Cinco mangos... Vou a pé pra casa... Quase uma hora da madruga... Os merdas, riquinhos, todos de carro, têm pai que banca... Têm pai... Enquanto que eu... Eu aqui no dedão... Por que não saí mais cedo daquela merda?

Ocê tem aula amanhã cedo, né? Vai ficar cansado, doutorzinho... Venha cá... O estômago tá ruim? Ah, não vá me aprontar sujeira, por que será que sempre vem aqui neste estado? Vem cá, vem cá, doutorzinho, tenho uma coisa gostosa aqui pra você... deixa te ajudar a entrar em mim... a te abrigar...

Este parque escuro me dá medo, diacho, eu não deveria ter virado aquele último cuba libre... Foda-se o mundo, foda-se o medo... Contavam os viados, que merda. Até o W... Porra, daquele eu não sabia, viado?... Sempre rodeado de meninas, o karmanguia, e viado? Cinco mangos... O que a M... cobra, ela deve estar lá, na Inhaúma... Vou pra zona, tenho que ir, merda...

Você gozou muito rápido, doutorzinho, tá cansado, né? Tá apagando, coitadinho...

Sim, lá está ela... Parece que sempre está aqui... Ela é legal, não dá medo, não passa doença... Pronto, já sorriu... Deixa eu conferir os cinco mangos no bolso, diacho, vou pagar adiantado ou acabo me esquecendo, foda-se pro dinheiro, pro DA, pra turma, pra este domingo de merda, pra vida...

Vou dar uma saidinha, volto logo, fique descansando, meu doutorzinho...

Que lugar mais sórdido, merda. O que estou fazendo aqui? Como uma criatura consegue viver sempre no escuro? Que espécie de vida ela leva? Diacho, conto tudo pra ela, e dela nada sei... Foda-se, quem se importa? Puta é puta, ela parece gostar disso, gosto que ela me acaricie os cabelos, que não me beije... Ela é apertadinha, como consegue? Será que a xoxota chupeta é, na verdade, a mão dela? E eu nem percebo? Foda-se, foda-se, ahahah, o pessoal contando os viados... Que contem viados, que se danem contando viados... Onde será que ela foi?...

Ei, acorde, doutorzinho, olha o que eu lhe trouxe... Vamos, acorde, coma enquanto está quentinho...

Sanduíche gostoso, nunca comi um igual, nossa, eu estava mesmo com uma fome danada. De pernil, quentinho... Onde será que ela arrumou isso? Num desses botecos imundos da zona, de onde mais, seu besta? Você está envenenado, seu doutorzinho de merda, definitivamente morto... Mas que delícia, que delícia...

Melhor ocê dormir mais um pouco, eu te acordo cedo, amanhã tem aula, né? Gosto de estudantes, gosto de você, muito... Mas tem que comer, viu? O meu doutorzinho tá muito magrinho... Agora, pode dormir... Não se preocupe com nada...

O Sol brilha a manhã da segunda-feira, subo a rua, a Inhaúma, passos rápidos, mil fantasmas dissipando-se na ressaca, minha nossa, tenho que chegar em casa, tomar um banho, aula às oito, estou ferrado, que loucura, que loucura, dormi na zona... Ah, até sonhei, sonhei com sanduíche... De pernil... Não faço mais isso, nunca mais volto aqui, merda, o que é isso no meu bolso? O dinheiro! Merda, ela não cobrou, não cobrou... Ai, que se dane... Ela que se dane!

3 comentários:

  1. queria que tivesses continuado a falar mais do teu pai, daquela noite, da perda...

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  2. Pois, eis aqui o conto que eu gostava de ler nO Caixote. Esse e o Dona Olga, do Calil. Contos delicados.

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