quinta-feira, 14 de julho de 2011

VASSALLU - A saga de um cavaleiro medieval, por Claudinei Vieira

18/3/2006 18:13:00
Uma fábula perversa na idade média



Por Claudinei Vieira







“Vassallu” é uma deliciosa saga das contradições e conflitos do ser humano, perdido entre suas crenças e devoções em mundos que se apresentam descoloridos e violentos. É uma fábula, pois através de um enredo simples de amores e paixões violentas, de justas entre cavaleiros, e descrições minuciosas do cotidiano em um passado já um tanto distante, não deixa por isso de conter uma profunda reflexão sobre temas que nos afetam ainda hoje e de modo tão decisivo: a luxúria, a ganância, a honra (ou falta de), a religiosidade (ou falta de), as guerras, as dores, o misticismo prosaico, o fanatismo (religioso, econômico), o fascínio pelo poder, a abnegação.
A história é simples: narra o crescimento e desenvolvimento do jovem cavaleiro Ybert de Troyes que com sua bravura e destemor ajudou os cruzados a conquistar e ocupar finalmente Jerusalém, expulsando (e matando, saqueando, estuprando) os infiéis muçulmanos. A batalha que durara vários anos e havia empolgado massas da população cristã, entre poderosos e os infelizes, camponeses, miseráveis e reis, cegos  de determinação religiosa ou ávidos pelos despojos, acabara. Algo de muito estranho, porém, havia acontecido: Ybert mata alguns cristãos!, que entre os escombros da cidade, no meio do sangue e do fogo, tinham tomado um bebê das mãos da mãe muçulmana e o esmigalhado na parede, e estavam prestes a estupra-la. Ele salva uma infiel!, desaparece durante a noite e é encontrado somente no dia seguinte, morto.
A pergunta colocada aos chefes da ocupação, dirigidos por Godefroi de Bouillon é se Ybert de Troyes fora possuído pelo demônio e, por conta disso, matara seus companheiros de luta. O inquérito é instaurado e a testemunha-chave é convocada, o médico, misto de sábio e espertalhão, conselheiro e companheiro de Ybert (e anteriormente de seu pai) que nunca é nomeado e é conhecido somente por Ruivo.
O livro é, portanto, a fala e a narração do Ruivo que conta a história pedida, mas ao seu modo. Falastrão, digressivo, especulativo, conhecedor de várias línguas e de uma mixórdia de conhecimentos esparsos acumulados em recantos os mais variados e por um mestre judeu, o Ruivo conduz a narrativa do seu modo: o que não viu pessoalmente, especula; e o que não sabe, o mais provável é que invente, embora nunca possamos distinguir entre a fábula, o incenso e a realidade. Sua lábia é aliciadora, cúmplice, muitas vezes irônica, cáustica, provocadora, cínica e dessacralizadora, quase herética, mas sem nunca alcançar o desrespeito. Simultaneamente submissa e revoltada, esperta e reacionária, sua voz comenta, induz, alfineta os poderosos, briga com o monge copista que transcreve sua fala (e tanto faz e fala que consegue comprová-lo um espião e inimigo), critica os reis, desnuda os religiosos, discute com o próprio Godefroi de Bouillon (para logo depois e de novo conclama-lo poderoso pela conquista de Jerusalém). Mais do que qualquer outro personagem do livro (entre fictícios e reais, pois que se misturam o tempo todo), o Ruivo é a personalidade e figura principal, e uma das mais instigantes e fascinantes de nossa literatura moderna.

- Não ouviste as palavras bíblicas proferidas pelo louco? O que é já foi; e o que há de ser também já foi. Não existe passado, nem futuro. Os antigos sábios gregos já o sabiam...
- Ora, Ruivo, estás a brincar com palavras!
- Não! Põe tento a isso, cavaleiro! O tempo que foi não é mais – e o que vai ser ainda não é! Então essas partes do tempo, umas passadas e outras futuras, simplesmente não existem! [...] Estou apenas repetindo Agostinho! Se o passado não é mais, e o futuro ainda não é, somente resta o presente. E se o próprio presente fosse sempre o presente, sem perder-se no passado, ou encaminhar-se para o não-ser do futuro, prorrogando-se infinitamente, constituir-se-ia na eternidade. E o que buscam os que temem a morte, senão a eternidade?
- Pela Virgem Santíssima! – disse Ybert, batendo uma palma – Deparo-me com um segundo louco em apenas uma noite! Por acaso também não és dado a fazer leituras nos astros? Se bem te entendi, não existindo o futuro, também não haverá a grande guerra anunciada pelas estrelas.
- O tempo, meu senhor, não existe por si mesmo, mas pelos acontecimentos! E, dentre estes, a guerra é a mãe e a rainha! E a única que traz as mudanças, criando os espaços pelos quais o tempo é capaz de fluir, de existir...

O tempo segue como um dos eixos pelo livro, o como se manifesta e como afeta a vida dos seres humanos e suas visões de acontecimentos futuros. Aos poucos, Ruivo vai demonstrando uma visão cínica (elaborada cuidadosamente, por certo), sem chegar ä conclusões. E, obviamente, o Diabo, suas manifestações, sua presença ou não, sua influencia e poder, ou ao contrário, sua ausência e conseqüente responsabilização dos seres humanos pelas suas próprias ações, constitui boa parte da fala e das digressões do Ruivo. E fundamental, pois que será a definição da pena sobre Ybert, mas não tão somente: é a justificativa e/ou a desculpa para todo o momento pelo qual passam, é a justificativa e a razão de tudo o que estão fazendo, do tratamento aos camponeses e às mulheres e ao senhores e seus vassalos, e a razão e/ou desculpa para o próprio movimento dos cavaleiros, das cruzadas, e da tomada de Jerusalém.
Fábula, sim, pois apesar de conter tantas informações fatuais das batalhas, da vida comum e comezinha da época, das cerimônias e dos códigos de honra dos cavaleiros (demonstrando o esforço de pesquisa do autor), o distanciamento é medido e consciente. Não estamos em face de um livro-documentário ou historiográfico, mas de uma narrativa ao estilo das histórias das Mil e Uma noites (com um feio ruivo, sem orelhas e com os olhos em constante estado de avermelhamento, em lugar de uma Sherazade...), com os mesmos propósitos moralisticos e definidores das fábulas.
E é daí que provém a tal perversidade. Pois se moral existe em “Vassallu” (não sei se perseguida pelo autor, mas está sim presente), ela no entanto é problematizada, discutida e relativizada e nada fácil de ser apreendida. O Mal ou o Bem são reais, porém indefiníveis. Subterfúgios do Demônio ou incapacidade do Ser Humano? O Ruivo tem suas respostas, mas como confiar neste narrador escorregadio e onipresente? Fábula maniqueísta, onde os opostos ficam se cruzando.
Pois maniqueista, porem nunca simplista. Proeza realizada pela escrita segura e muito firme de Sérgio Mudado que consegue manter o tom sóbrio e tranqüilo durante todas as suas páginas, ao descrever a sagração de um cavaleiro, o nascimento de um messias, ou o massacre de uma cidade inteira. Também admirável é o modo como mescla a linguagem sem nunca descambar para um formalismo antiquado ou um popularismo atualizante, e a leitura flui fácil e gostosa, com capítulos curtos e certeiros.
Sérgio Mudado é medico e teve sua atenção despertada para o tema quando soube da prática de cavaleiros medievais de carregarem consigo vasos de alabastro para que, caso morressem em combate em terras distantes, seus corpos fossem fervidos e encerrados no vaso para serem transportados até poderem ser enterrados em solo natal. Esta história o fascinou de tal modo que o incitou a pesquisar mais e sentir que poderia escrever sobre isso.
Este fascínio foi nos transmitido de modo adequado. “Vassallu” produz aquela agradável e estranha sensação de, ao mesmo tempo, querer terminar logo de ler para sabermos afinal como vai acabar, e desespero porque vai acabar. E infelizmente uma hora o livro termina.

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