sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Benedito Nunes e Juca Peralta

O REALISMO GROTESCO DE JUCA PERALTA

Nas distintas formas que as caracterizam, a poesia e a prosa em nossa época são diversificadas e ao mesmo tempo abrangentes, quando não se misturam em conjuntos híbridos. Para ficarmos nos limites da prosa, essa abrangência diversifi cada alcança tanto o seu desenvolvimento linear, interrompido por versos intercorrentes, o que é mais comum nos textos filosóficos, como, por exemplo, nos do Heidegger tardio, quanto na intencionalidade dialógica já alcançada em Macunaíma, de Mario de Andrade, e em Memórias Sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade, peças-chaves de nosso modernismo. É esse tipo de intencionalidade dialógica que percorre, ora como personificação de falas, ora como simples glosa ou paródia de outros textos prosaicos, quer nacionais quer estrangeiros, as linhas e entrelinhas do romance Os negócios extraordinários de um certo Juca Peralta.
Quem narra propriamente é uma singular voz feminina, em contínua metamorfose, que assume, em momentos, o segredo aos poucos confi ado de ancestral sabedoria na pessoa de Noge, e encarnando-se, também, em uma falsa ilusionista de feira, Cleópatra, que é também uma deusa egípcia, fonte de encantamentos mil, a qual trabalha seu ilusionismo com a sutil matéria do tempo, em contraponto a uma banal história desenrolada de uma gague verbal: a propaganda de um novo produto da importante firma holandesa Philips, gerenciada por Juca Peralta e denominado o Matador. Apenas um sensacional rádio de três faixas de onda, a preço popular, que desbancaria produtos similares, gera, pelo nome, uma expectativa de agressão e de mortandade, contaminando Minas e seu governador Bento Antão.
Nesse romance, os personagens têm nomes arrevesados, a exemplo de um dos mais salientes, Leonardus van der Berg, um negro pachola e poliglota nascido na Guiana Holandesa e que fala holandês. Nas conversas deles todos, ao longo do romance, intercalam-se o tempo todo versos das modinhas de Noel Rosa, também feito personagem. O próprio romance é um híbrido conjunto fragmentado, que persegue e é perseguido pelo Tempo e suas loucuras, desse ponto sempre visado por uma narradora, assim expressamente designada. Em contraponto com as peripécias de Juca Peralta, estão as idas e vindas da própria narrativa, que se divide em três partes dentro de um período datado – a partir de janeiro de 1939, ano fatídico, já instalado o Estado Novo por Getúlio Vargas.
Não esqueçamos, porém, que com essas idas e vindas é o próprio Tempo “em seu fluir invisível” que se elabora, como matéria prima da própria narrativa, o Tempo vertiginoso, que tem medida desigual. E nesse ponto, a matéria narrativa vai abrigar a citação tirada de uma das partes de José e seus Irmãos, o romance cíclico de Thomas Mann: “É muito fundo o poço do passado, a signifi cação, o peso e a plenitude do Tempo não são uma mesma coisa em qualquer parte”. Mas deverá ser diferente em Minas. “Afirmo-lhes sem titubear: a História apenas deixa de ser estória quando adquire a esclarecedora luz emanada do subterrâneo de nossas montanhas”, diz, excitado, João Licamar (p. 120), a despeito da importância mitológica das fi guras do Panteão egípcio, na obra.
A narrativa desse romance é um torvelinho; arrasta para dentro de si até mesmo o Sertão dadivoso e áspero de Grande sertão: veredas, e, de sobra, apodera-se da figura do Grivo a exclamar: “Ara! O Sertão. Para onde toda dor foi degredada” (p. 171). E logo em seguida, fi xa-se a presença de quem a escreveu, um jovem médico, que então contava 27 anos de idade, então leitor de A Montanha Mágica. O citado ano fatídico de 1939 marca o início da Segunda Guerra Mundial, a partir do qual se delinearia o panorama histórico pertinente, em que assoma o nazismo, que corrói a humanidade, assim como a tuberculose perfura os pulmões de Juca. É isso que a narrativa espelha, mas ela não pode abranger tudo. “É impossível – absolutamente inviável – detalhar todos os movimentos de todos os personagens em todos os momentos” (p. 410). Até porque são narradas as impressões inenarráveis das músicas de Chopin e de Beethoven, abordadas por dois personagens conferencistas.
As falas dos personagens, comuns, as mais livres e, por vezes as mais chulas, atestam a localização da linguagem coloquial da obra – no plano inferior da escala do pensamento – para baixo da zona conceptual das abstrações. Ela é rabelaisiana com momentos de soltura pornográfi ca. E assim, sob esse saliente aspecto, poderíamos enquadrá-la, sem dúvida, no realismo grotesco que Bakhtin estuda em A obra de François Rabelais.

Belém, setembro, 2010.
Benedito Nunes

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